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"O EVANGELHO SEGUNDO O VENTO"
Poesia invade narrativa
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Imagine o leitor "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector, aquela história da senhora burguesa que delira em seu apartamento e come uma barata. Bem,
tire a personagem, a barata e a história e deixe o delírio, a epifania: o
que resta é "O Evangelho Segundo o Vento", de Carlos Nejar.
O gaúcho é um poeta, mesmo quando escreve prosa, como é o caso desta sua última ficção. Imagens poderosas, metáforas, antíteses e paradoxos sobejam em cada página, às vezes em cada parágrafo onde se vê pouca narrativa.
Há tênues indicações de espaço (o aldeamento Pontal de Orvalho)
e de personagens (o pai Reinaldo, a amada Joana, o cão Viator), que
se metamorfoseiam. Viator, por exemplo, passa a ser chamado de
Sábado e depois se transforma em rio. O narrador, João Pero, é João
Pássaro, João Vento, João Pedra, à medida que a obra progride.
Encontramos semelhanças entre João Pero e João Evangelista: a
origem entre pescadores; a ênfase na doutrina do amor; a imagem
da águia (símbolo de são João), a menção a Patmos, onde o apóstolo redigiu o Apocalipse; a descrição, ainda que hermética, da paixão de Cristo. Afinal, evangelho também é isso: a transmissão da boa nova, da palavra redentora
representada pelo Filho de Deus.
É famoso o início do "Evangelho Segundo São João": "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus". Assim como o apóstolo
enfatiza o poder do Verbo (ou Jesus, a Palavra de Deus), João Pero
destaca a importância da palavra,
"força pluviosa de Deus", capaz
de animar-nos a consciência.
"Quando a língua assume sua
sintaxe, forma o mundo", diz. É a
palavra que nos desperta "de um
sono mais fundo". Saber a palavra
é conhecer a linguagem da natureza. João afirma ter aprendido "a
língua de todas as árvores", pois
"tudo fala": basta "saber ouvir os
sinais". A palavra instaura o mundo no mundo. Graças a ela, entramos em contato com as coisas e
com nós mesmos. Ganhamos a
imortalidade. Ela nos salva e nos
cura da "fome de Deus". É a forma de a poesia se expressar.
Ao criar uma narrativa que se
manifesta poeticamente, Nejar
nos lembra do poder da palavra,
hoje banalizada. A dificuldade em
penetrar seu texto é a mesma dos
homens "nus de vocábulos, mudos de fala". Decifrar-lhe o evangelho é granjear a alfabetização no
sagrado. É retornar ao tempo em
que contemplamos o mundo pela
primeira vez. Um momento em
nossa infância ancestral, que teimamos em esquecer.
O Evangelho Segundo o Vento
Autor: Carlos Nejar
Editora: Escrituras
Quanto: R$ 26 (160 págs.)
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