UOL


São Paulo, sábado, 22 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O EVANGELHO SEGUNDO O VENTO"

Poesia invade narrativa

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Imagine o leitor "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector, aquela história da senhora burguesa que delira em seu apartamento e come uma barata. Bem, tire a personagem, a barata e a história e deixe o delírio, a epifania: o que resta é "O Evangelho Segundo o Vento", de Carlos Nejar.
O gaúcho é um poeta, mesmo quando escreve prosa, como é o caso desta sua última ficção. Imagens poderosas, metáforas, antíteses e paradoxos sobejam em cada página, às vezes em cada parágrafo onde se vê pouca narrativa.
Há tênues indicações de espaço (o aldeamento Pontal de Orvalho) e de personagens (o pai Reinaldo, a amada Joana, o cão Viator), que se metamorfoseiam. Viator, por exemplo, passa a ser chamado de Sábado e depois se transforma em rio. O narrador, João Pero, é João Pássaro, João Vento, João Pedra, à medida que a obra progride.
Encontramos semelhanças entre João Pero e João Evangelista: a origem entre pescadores; a ênfase na doutrina do amor; a imagem da águia (símbolo de são João), a menção a Patmos, onde o apóstolo redigiu o Apocalipse; a descrição, ainda que hermética, da paixão de Cristo. Afinal, evangelho também é isso: a transmissão da boa nova, da palavra redentora representada pelo Filho de Deus.
É famoso o início do "Evangelho Segundo São João": "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus". Assim como o apóstolo enfatiza o poder do Verbo (ou Jesus, a Palavra de Deus), João Pero destaca a importância da palavra, "força pluviosa de Deus", capaz de animar-nos a consciência.
"Quando a língua assume sua sintaxe, forma o mundo", diz. É a palavra que nos desperta "de um sono mais fundo". Saber a palavra é conhecer a linguagem da natureza. João afirma ter aprendido "a língua de todas as árvores", pois "tudo fala": basta "saber ouvir os sinais". A palavra instaura o mundo no mundo. Graças a ela, entramos em contato com as coisas e com nós mesmos. Ganhamos a imortalidade. Ela nos salva e nos cura da "fome de Deus". É a forma de a poesia se expressar.
Ao criar uma narrativa que se manifesta poeticamente, Nejar nos lembra do poder da palavra, hoje banalizada. A dificuldade em penetrar seu texto é a mesma dos homens "nus de vocábulos, mudos de fala". Decifrar-lhe o evangelho é granjear a alfabetização no sagrado. É retornar ao tempo em que contemplamos o mundo pela primeira vez. Um momento em nossa infância ancestral, que teimamos em esquecer.


O Evangelho Segundo o Vento
    Autor: Carlos Nejar Editora: Escrituras Quanto: R$ 26 (160 págs.)



Texto Anterior: Livros/lançamentos - Poesia: Carlos Nejar recita seus cantos em dois volumes
Próximo Texto: Poesia: Editoras criam "sociedade dos poetas vivos"
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.