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São Paulo, sábado, 22 de fevereiro de 2003

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"AS FORMIGAS DA ESTAÇÃO DE BERNA"

Obra é seleção de quatro novelas

Simbolismos de Comment desnudam vidas regulares

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

A Suíça, na nossa imaginação, é o país dos cartões-postais alpinos e o paraíso fiscal para nossos Silveirinhas. Na ficção de Bernard Comment, seus subterrâneos têm muito mais a dizer.
O autor chega ao Brasil com uma seleção de quatro novelas curtas, cuja principal, "As Formigas da Estação de Berna", dá título ao volume. Intérprete de Roland Barthes e discípulo do inesgotável Jean Starobisnki, Comment é considerado ótimo ensaísta. Suas digressões pelas vielas da literatura também não decepcionam.
Em entrevistas, Comment reivindica a influência maior do beatnik Jack Kerouac em sua produção literária. Mas uma primeira leitura desperta a impressão de que se trata de Franz Kafka seu fantasma mais presente.
Pois, ao modo de Kafka, Comment recorre a uma linguagem quase protocolar para revelar os não-ditos de vidas demasiado regulares. A aposta, portanto, é alcançar a perversão da norma dos fatos por uma obsessão narrativa, cujo trunfo é a objetividade. Dos títulos reunidos em "As Formigas...", "O Arquivista" é o mais exemplar desse procedimento.
A situação narrada já denota a inclinação kafkiana do autor. Um ex-guerrilheiro tenta fazer o governo reconhecer sua culpa como criminoso em uma época passada. Contudo, em meio à papelada oficial, suas ações, ou seja, àquilo que o tornaria visível aos olhos da história, ele simplesmente não existe, pois não há registro algum de seus feitos subversivos. Todo esforço do personagem será então no sentido de inventar uma identidade oficial, saída capaz de garantir uma existência.
Das quatro histórias, a mais saborosa é a do título, em que o agenciamento de simbolismos animais não resulta óbvio (ao contrário dos pássaros-migrantes da parábola política "As Migrações", que encerra o volume).
As formigas são tanto os mendigos que vivem nos subterrâneos da estação (e que sozinhos já bastariam para corroer o mito da sociedade afluente e sem rupturas como se imagina a Suíça) quanto as figuras que ilustram as notas de mil francos suíços. Um mendigo um belo dia ganha uma nota de um passante. Por mais que se esforce para trocá-la, nunca consegue (por causa das roupas esmolambadas, de seus cabelos sebosos, de sua falta de banho).
Nessa parábola simples, o alto e o baixo da sociedade se cruzam sem perceber. Mais que isso. Comment reinterpreta de modo perverso a circulação que dá verdadeiro peso à idéia de riqueza.
Intencionalmente político, Comment faz sua crítica da hipocrisia em primeiro grau, sem precisar dar lições de moral por meio das falas de seus personagens.


As Formigas da Estação de Berna
    Autor: Bernard Comment Editora: Estação Liberdade Quanto: R$ 21 (120 págs.)



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