São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

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NINA HORTA

Depois de três dias de folia


Eu tinha um pai carnavalesco. Desde a mais tenra idade ficava nos ombros dele

"A ESTRELA D'alva no céu desponta, e a Lua anda tonta com tamanho esplendor. E as pastorinhas, pra consolo da Lua, vão cantando na rua, lindos versos de amor..."
Suados, exauridos, ou melhor, exorcizados, era a hora de sentar no degrau, passar as mãos pelos cabelos cheios de confete, tomar o último gole de Guaraná quente, morder o último pedaço de sanduíche de pão branco com o presunto ressecado já se enroscando e se mandar para casa de olhos iluminados, recendendo a lança-perfume, esperando o próximo Carnaval. Liberdade total, alegria pura que nos tiraria da chatice do cotidiano.
Eu tinha um pai carnavalesco, presente de Dionísio, e desde a mais tenra idade ficava nos ombros dele nas festas de clube, onde, claro, quem se divertia era ele. Cheguei aos 13 anos sem deixar de ir a uns dez bailes por ano, ora cigana, ora tirolesa, ora num bloco de Cupido de blusa bordada de corações atravessados por uma seta. Só que meus corações eram verdes, não vermelhos - eu tinha uma mãe assaz criativa.
Num destes bailes, no Municipal, chegamos, e nada de música ou orquestra, alguma coisa dera errado. E adivinhem quem apareceu bufando e resmungando que isso só acontecia com ele, mas que assim mesmo animou um bando pulador de adolescentes? Luiz Gonzaga, o velho Luiz Gonzaga. Agüentou firme, coberto de confete, e com certeza dançamos uma "Asa Branca", pelo menos, ao ritmo de marchinha.
As músicas que antecipavam o Carnaval eram nosso assunto. Lembro-me do dia em que meu pai chegou em casa cantando (desafinado). "Estava jogando sinuca, uma nega maluca me apareceu! Vinha com o filho no colo e dizia pro povo que o filho era meu! Não, senhor, toma que o filho é teu!" Achei a letra altamente pornográfica, provavelmente inventada por ele.
Bem, aprendi a fazer barreado com gente do Paraná que me contou que a panela ficava sobre o calor das brasas do fogão, hermeticamente fechada pela tampa barreada de goma de farinha de trigo durante os três dias de folia. Quando os foliões voltavam do Carnaval, esfomeados, caíam sobre o barreado, a carne gostosa, toda desmanchada, e comiam tanto que às vezes morriam e eram velados por ciganas, pierrôs e homens vestidos de mulher.

Barreado de Antonio Houaiss
(serve dez pessoas)

Misture bem três cebolas médias picadas, com três tomates médios picados, seis dentes de alho descascados inteiros, seis folhas de louro, três pitadas de cominho, três pitadas de pimenta-do-reino em pó, três molhos de cheiro-verde picado. Depois do tempero bem misturado, separe-o em três porções equivalentes.
Separe em três porções equivalentes 4 kg de carne (gorda, meio magra e magra, como peito, alcatra, maminha, contrafilé e patinho); corte em pedaços relativamente graúdos, como cubos de 4 cm de aresta. Separe em três porções equivalentes 800 g de toicinho fresco ou defumado, cortado em cubos da metade do tamanho dos anteriores.
Numa panela de barro com boa tampa e bem ajustada (nessa panela destampada por ora), faça andares com uma camada de carne, uma de toicinho e uma de tempero, e repita as três operações mais uma vez. Por fim, espalhe por cima de tudo uma xícara de café de vinagre, uma xícara de café de óleo. Deixe repousar, bem apertadinho, essa panelada, em lugar bem fresco, por umas seis horas, sem mexer nem remexer.
Tampe a panela e faça uma pasta grumosa com farinha de trigo e calafete na junção da tampa e da panela. Fogo baixo por umas quatro horas. Serve-se na própria panela (Lembrem-se que hoje em dia temos a panela de pressão!).
Acompanhamento (meu)
Farinha de mandioca ou farofa, picles de pepino agridoce, compota de laranjinha kumquat, pinhões e laranjas descascadas.

ninahorta@uol.com.br


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