|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NINA HORTA
Depois de três dias de folia
Eu tinha um pai carnavalesco. Desde a mais tenra idade ficava nos ombros dele
|
"A ESTRELA D'alva no céu
desponta, e a Lua anda
tonta com tamanho esplendor. E as pastorinhas, pra consolo da Lua, vão cantando na rua,
lindos versos de amor..."
Suados, exauridos, ou melhor,
exorcizados, era a hora de sentar no
degrau, passar as mãos pelos cabelos
cheios de confete, tomar o último
gole de Guaraná quente, morder o
último pedaço de sanduíche de pão
branco com o presunto ressecado já
se enroscando e se mandar para casa
de olhos iluminados, recendendo a
lança-perfume, esperando o próximo Carnaval. Liberdade total, alegria pura que nos tiraria da chatice
do cotidiano.
Eu tinha um pai carnavalesco,
presente de Dionísio, e desde a mais
tenra idade ficava nos ombros dele
nas festas de clube, onde, claro,
quem se divertia era ele. Cheguei aos
13 anos sem deixar de ir a uns dez
bailes por ano, ora cigana, ora tirolesa, ora num bloco de Cupido de blusa bordada de corações atravessados por uma seta. Só que meus corações
eram verdes, não vermelhos - eu tinha uma mãe assaz criativa.
Num destes bailes, no Municipal,
chegamos, e nada de música ou orquestra, alguma coisa dera errado. E
adivinhem quem apareceu bufando
e resmungando que isso só acontecia com ele, mas que assim mesmo
animou um bando pulador de adolescentes? Luiz Gonzaga, o velho
Luiz Gonzaga. Agüentou firme, coberto de confete, e com certeza dançamos uma "Asa Branca", pelo menos, ao ritmo de marchinha.
As músicas que antecipavam o
Carnaval eram nosso assunto. Lembro-me do dia em que meu pai chegou em casa cantando (desafinado).
"Estava jogando sinuca, uma nega
maluca me apareceu! Vinha com o
filho no colo e dizia pro povo que o
filho era meu! Não, senhor, toma
que o filho é teu!" Achei a letra altamente pornográfica, provavelmente
inventada por ele.
Bem, aprendi a fazer barreado
com gente do Paraná que me contou
que a panela ficava sobre o calor das
brasas do fogão, hermeticamente fechada pela tampa barreada de goma
de farinha de trigo durante os três
dias de folia. Quando os foliões voltavam do Carnaval, esfomeados,
caíam sobre o barreado, a carne gostosa, toda desmanchada, e comiam
tanto que às vezes morriam e eram
velados por ciganas, pierrôs e homens vestidos de mulher.
Barreado de Antonio Houaiss
(serve dez pessoas)
Misture bem três cebolas médias
picadas, com três tomates médios
picados, seis dentes de alho descascados inteiros, seis folhas de louro,
três pitadas de cominho, três pitadas de pimenta-do-reino em pó,
três molhos de cheiro-verde picado. Depois do tempero bem misturado, separe-o em três porções
equivalentes.
Separe em três porções equivalentes 4 kg de carne (gorda, meio
magra e magra, como peito, alcatra, maminha, contrafilé e patinho); corte em pedaços relativamente graúdos, como cubos de 4
cm de aresta. Separe em três porções equivalentes 800 g de toicinho fresco ou defumado, cortado
em cubos da metade do tamanho
dos anteriores.
Numa panela de barro com boa
tampa e bem ajustada (nessa panela destampada por ora), faça andares com uma camada de carne,
uma de toicinho e uma de tempero,
e repita as três operações mais uma
vez. Por fim, espalhe por cima de
tudo uma xícara de café de vinagre,
uma xícara de café de óleo. Deixe
repousar, bem apertadinho, essa
panelada, em lugar bem fresco, por
umas seis horas, sem mexer nem
remexer.
Tampe a panela e faça uma pasta
grumosa com farinha de trigo e calafete na junção da tampa e da panela. Fogo baixo por umas quatro
horas. Serve-se na própria panela
(Lembrem-se que hoje em dia temos a panela de pressão!).
Acompanhamento (meu)
Farinha de mandioca ou farofa,
picles de pepino agridoce, compota
de laranjinha kumquat, pinhões e
laranjas descascadas.
ninahorta@uol.com.br
Texto Anterior: Cultura japonesa Próximo Texto: A babel do Bom Retiro Índice
|