São Paulo, sexta-feira, 22 de março de 2002

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ANÁLISE

Mesmo oficial, leitura do artista é saborosíssima

DA REPORTAGEM LOCAL

Nelson Gonçalves é daquelas vidas de artista que dariam bem mais que um documentário -um romance, um filme-biografia, uma minissérie de TV... O intérprete do magrelo loucão que cantava como ninguém não seria, por certo, o parrudo Alexandre Borges, mas que a história daria um filme, ah, daria.
Sabendo disso, o diretor de "Nelson Gonçalves", Eliseu Ewald, encarou a empreitada, mas acabou optando pela meia decisão do hibridismo e fez um dito "docudrama".
Sobre o modo como revisa a vida do cantor, o trabalho é híbrido, também. Esmera-se em obter imagens de praticamente toda a riquíssima galeria de cantores e cantoras da época áurea da canção popular brasileira, o que já não seria possível num filme apenas de ficção.
Amontoam-se na tela imagens incríveis e pouquíssimo vistas em dias atuais de todo o mundo artístico que conviveu com Nelson. Se puro documentário, o filme identificaria tantos astros e estrelas, um por um. No contexto, não cabe, infelizmente.
Por outro lado, há a dramatização. O "docudrama" vende, segundo seu diretor, a versão dos fatos que o próprio Nelson espalhava. A cantora Betty White aparece incendiando-se de desespero à vista do galã, e é o que o espectador do filme sai sabendo.
Versões contraditórias da morte da amante de Nelson subsistem até hoje -suicídio, assassinato, acidente com gás de cozinha... O "docudrama", tal qual ficção, crava a preferida do biografado. E a história segue sem solução.
É um exemplo, e o filme tem vários parecidos. A tendência à oficialidade transparece também no tratamento dado à gravadora de vida toda de Nelson, ex-RCA, atual BMG.
Apoiadora do filme, a gravadora aparece meio heróica, pendurando pintura do artista na parede de entrada e tecendo loas ao velho seresteiro. Será que a relação era esse mar de rosas todo?
O filme não responde (nem pretende) e, por lacunas como essa, vai transmitindo uma leitura oficial (e ainda assim saborosíssima) de Nelson Gonçalves.
Não se perde por isso o vigor da narrativa -ali estão as imagens, as canções sempre impressionantes na voz do dono, aqui e ali até as dramatizações. Só se esquece de avisar o incauto freguês que ali está um recorte ideológico da história, e não a história inteira.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)


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