São Paulo, sexta-feira, 22 de março de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Patrocínios e patrocinados

Não sei , não, mas ainda sou do tempo em que uma pessoa individualmente ou duas ou três reunidas decidiam escrever um livro, montar uma peça teatral, fazer um filme sobre isso ou aquilo, produzir um troço qualquer na área cultural. O projeto começava com os recursos do próprio grupo ou da pessoa interessada. No meio do caminho, ou mesmo no fim, arranjavam um auxílio, uma parceria qualquer, e a coisa saía.
Hoje, as idéias continuam soltas, digo mais: pululam. Todo mundo tem idéias. O que falta é patrocínio, e nada se faz sem ele. Daí que a melhor idéia dos chamados produtores culturais é não ter idéia alguma, mas ter um patrocínio.
A mania pode até ser antiga. Os imperadores romanos patrocinavam torneios de poesia e espetáculos de arena, em que a principal matéria-prima -o cristão e o leão- não custava nada. O problema era juntá-los na arena, e o espetáculo estava garantido.
Mecenas legou o nome à posteridade, virou sinônimo de si mesmo, daí a palavra mecenato que deu à Renascença alguns dos maiores gênios da humanidade.
Contudo era um movimento de cima para baixo. O príncipe -ou o imperador- é que por conta própria decidia procurar o artista e produzir o fato artístico. Michelangelo não procurou Júlio 2º. Foi o papa que procurou o artista e o pagou -com dinheiro que arrancava de cidades que mandava sitiar. E, quando não havia cidade para saquear, ele vendia indulgências plenárias.
Daí que havia muitos mecenas e relativamente poucos artistas. Era comum o príncipe querer passar à posteridade por meio de um artista. Ludwig 2º, da Baviera, foi dos últimos, talvez, a pretender a imortalidade à custa de Wagner.
Mudou a mão do processo. Hoje são os wagneres que procuram um príncipe interessado nesse tipo de imortalidade. Como escasseiam os mecenas, restam os governos, os bancos, as instituições internacionais, as empresas e, em caso de desespero, as caixas beneficentes dos empregados públicos ou privados, os montepios das viúvas, até mesmo os shoppings de secos e molhados.
Nem importa o que será produzido. Parte-se do princípio de que a posteridade aguarda com ansiedade o poema, o romance, a biografia de fulano, a peça teatral, o filme, o conjunto de dança. Vende-se à vítima a idéia de que o mundo será outro depois que o filme, a peça teatral, o disco ou o poema ficarem prontos. O mundo pode não ser outro, mas o produtor fica outro após o patrocínio.
Como a crise de mecenas é geral, até time de futebol entrou na necessidade global de descolar patrocínio. A seleção brasileira de futebol, na última Copa do Mundo, foi patrocinada por uma multinacional -uma jogada que criou confusão até hoje não explicada. E até o Carnaval, que era popular e grátis, precisa de patrocínio das cervejas em lata.
Ali pelos meados do século passado, um faquir indiano ficou exposto no saguão de um cinema, no centro do Rio. O cara prometia quebrar o recorde mundial de jejum. Num caixão de vidro, cercado de cobras, com aquele turbante que faz um cearense parecer indiano, o faquir nada comia, nada bebia, e a barba só não crescia porque ele era devidamente barbado e não se podia saber se ela crescia ou não.
Não me lembro se ele conseguiu quebrar o recorde mundial de fome. Acho que não, pois a última vez que passei por ali, ainda faltavam duas semanas para atingir a glória e o cara estava devastado, os olhos fundos e apagados, a pele amarelada dos moribundos.
Nisso tudo, o importante é que o indiano havia descolado um patrocínio. Por ironia, um leite em pó para lactentes, um leite vitaminado, turbinado com proteínas e sais minerais. No finalzinho, apareceu outro patrocinador, uma casa lotérica que prometia vender bilhetes premiados -e consta que o dono das cobras que serviam de coadjuvantes para o espetáculo havia ganho a sorte grande com o extraordinário bilhete 00001.
Outro patrocínio que fez furor foi o de um fabricante de acordeões, que lotou o Maracanãzinho com um show de mil e tantos acordeões tocando ""Saudades do Matão", ""Luar do Sertão" e a protofonia de ""O Guarani", em arranjo do professor Mário Mascarenhas.
Volta e meia sou procurado por um grupo disso ou daquilo que me propõe um projeto mirabolante, posso ganhar numa só tacada aquilo que não consegui ganhar ao longo de toda a minha vida. Não me entusiasmo com tão formosa perspectiva. Sei que, raspando o bolso dos proponentes, não daria nem para pagar o almoço ""de trabalho" a que me convidam.
Mas sempre há alguém que fura a cortina de indiferença ou desconfiança, solta um dinheiro e aí o projeto começa a rolar, até que surge um rolo qualquer e tudo empaca.
Só não há desespero porque existem grifes que, substituindo imperadores, papas e príncipes, ainda dispõem de grana para ajudar a posteridade a se deliciar com a nossa produção artística e cultural. Mesmo assim, é válida a preocupação: no dia em que a humanidade enjoar da Coca-Cola, quem patrocinará a Coca-Cola?



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