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CARLOS HEITOR CONY
Patrocínios e patrocinados
Não sei , não, mas ainda sou
do tempo em que uma pessoa individualmente ou duas ou
três reunidas decidiam escrever
um livro, montar uma peça teatral, fazer um filme sobre isso ou
aquilo, produzir um troço qualquer na área cultural. O projeto
começava com os recursos do próprio grupo ou da pessoa interessada. No meio do caminho, ou mesmo no fim, arranjavam um auxílio, uma parceria qualquer, e a
coisa saía.
Hoje, as idéias continuam soltas, digo mais: pululam. Todo
mundo tem idéias. O que falta é
patrocínio, e nada se faz sem ele.
Daí que a melhor idéia dos chamados produtores culturais é não
ter idéia alguma, mas ter um patrocínio.
A mania pode até ser antiga. Os
imperadores romanos patrocinavam torneios de poesia e espetáculos de arena, em que a principal
matéria-prima -o cristão e o
leão- não custava nada. O problema era juntá-los na arena, e o
espetáculo estava garantido.
Mecenas legou o nome à posteridade, virou sinônimo de si mesmo, daí a palavra mecenato que
deu à Renascença alguns dos
maiores gênios da humanidade.
Contudo era um movimento de
cima para baixo. O príncipe -ou
o imperador- é que por conta
própria decidia procurar o artista
e produzir o fato artístico. Michelangelo não procurou Júlio 2º. Foi
o papa que procurou o artista e o
pagou -com dinheiro que arrancava de cidades que mandava
sitiar. E, quando não havia cidade para saquear, ele vendia indulgências plenárias.
Daí que havia muitos mecenas
e relativamente poucos artistas.
Era comum o príncipe querer
passar à posteridade por meio de
um artista. Ludwig 2º, da Baviera, foi dos últimos, talvez, a pretender a imortalidade à custa de
Wagner.
Mudou a mão do processo. Hoje
são os wagneres que procuram
um príncipe interessado nesse tipo de imortalidade. Como escasseiam os mecenas, restam os governos, os bancos, as instituições
internacionais, as empresas e, em
caso de desespero, as caixas beneficentes dos empregados públicos
ou privados, os montepios das
viúvas, até mesmo os shoppings
de secos e molhados.
Nem importa o que será produzido. Parte-se do princípio de que
a posteridade aguarda com ansiedade o poema, o romance, a
biografia de fulano, a peça teatral, o filme, o conjunto de dança.
Vende-se à vítima a idéia de que
o mundo será outro depois que o
filme, a peça teatral, o disco ou o
poema ficarem prontos. O mundo
pode não ser outro, mas o produtor fica outro após o patrocínio.
Como a crise de mecenas é geral, até time de futebol entrou na
necessidade global de descolar
patrocínio. A seleção brasileira de
futebol, na última Copa do Mundo, foi patrocinada por uma multinacional -uma jogada que
criou confusão até hoje não explicada. E até o Carnaval, que era
popular e grátis, precisa de patrocínio das cervejas em lata.
Ali pelos meados do século passado, um faquir indiano ficou exposto no saguão de um cinema,
no centro do Rio. O cara prometia
quebrar o recorde mundial de jejum. Num caixão de vidro, cercado de cobras, com aquele turbante que faz um cearense parecer indiano, o faquir nada comia, nada
bebia, e a barba só não crescia
porque ele era devidamente barbado e não se podia saber se ela
crescia ou não.
Não me lembro se ele conseguiu
quebrar o recorde mundial de fome. Acho que não, pois a última
vez que passei por ali, ainda faltavam duas semanas para atingir a
glória e o cara estava devastado,
os olhos fundos e apagados, a pele
amarelada dos moribundos.
Nisso tudo, o importante é que o
indiano havia descolado um patrocínio. Por ironia, um leite em
pó para lactentes, um leite vitaminado, turbinado com proteínas e sais minerais. No finalzinho, apareceu outro patrocinador, uma casa lotérica que prometia vender bilhetes premiados
-e consta que o dono das cobras
que serviam de coadjuvantes para o espetáculo havia ganho a sorte grande com o extraordinário
bilhete 00001.
Outro patrocínio que fez furor
foi o de um fabricante de acordeões, que lotou o Maracanãzinho com um show de mil e tantos
acordeões tocando ""Saudades do
Matão", ""Luar do Sertão" e a protofonia de ""O Guarani", em arranjo do professor Mário Mascarenhas.
Volta e meia sou procurado por
um grupo disso ou daquilo que
me propõe um projeto mirabolante, posso ganhar numa só tacada aquilo que não consegui ganhar ao longo de toda a minha vida. Não me entusiasmo com tão
formosa perspectiva. Sei que, raspando o bolso dos proponentes,
não daria nem para pagar o almoço ""de trabalho" a que me
convidam.
Mas sempre há alguém que fura
a cortina de indiferença ou desconfiança, solta um dinheiro e aí
o projeto começa a rolar, até que
surge um rolo qualquer e tudo
empaca.
Só não há desespero porque
existem grifes que, substituindo
imperadores, papas e príncipes,
ainda dispõem de grana para
ajudar a posteridade a se deliciar
com a nossa produção artística e
cultural. Mesmo assim, é válida a
preocupação: no dia em que a humanidade enjoar da Coca-Cola,
quem patrocinará a Coca-Cola?
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