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RODAPÉ
A prosa experimental do ensaio
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
À primeira vista, "Transversal do Tempo", de Rodrigo
Petronio, é uma antologia de crítica literária sobre autores como
Montaigne, Vico, Voltaire, Fernando Pessoa e Francis Ponge. No
entanto, sua leitura nos lança em
um tipo de escrita que está distante tanto do rigor acadêmico quanto da objetividade dos artigos de
jornal.
Com uma prosa pessoal, sentenciosa, recheada de divagações
sobre diferentes livros e escritores, os textos desse jovem autor
paulista pertencem a um gênero
pouco praticado hoje em dia: o
ensaio.
Frequentemente vemos essa palavra aplicada a obras de teoria literária e a textos de sociologia,
história ou filosofia. Nesses casos,
ela serve para designar um texto
de ocasião, mais ligeiro na forma e
menos ambicioso no conteúdo do
que grandes tratados ou teses.
Essa liberdade de espírito está,
efetivamente, na raiz do próprio
termo, que se tornou conhecido
com os "Ensaios" de Montaigne,
no século 16. Como mostra o crítico português Silvio Lima, em
"Ensaio sobre a Essência do Ensaio", as versões da obra de Montaigne para o latim dão uma idéia
do caráter experimental desse gênero que se opunha à austeridade
intelectual e à impessoalidade dos
tratados medievais.
Segundo Lima, o termo francês
"essai" foi traduzido sucessivamente por palavras como "gustus" (de "gustare", saborear), "conatus" (esforço), "adumbratio"
(esboço) ou "tentamen" (tentativa), sendo que a tradução mais
fiel, que restituiria o termo francês
a sua origem latina, seria "exagium" (exame).
Mas há também no ensaio, além
desse empirismo que começa a se
pronunciar com o Renascimento,
um caráter intrinsecamente literário, uma preocupação formal
que gerou uma tradição que chega até autores contemporâneos
como Camus, Cioran ou Barthes,
todos muito diferentes entre si,
mas identificados com a "restituição literária da fluidez do mundo
e da existência" de que fala Hugo
Friedrich, com a busca de uma
linguagem que, sem ser ficcional,
capte a pluralidade das coisas (fatos cotidianos, costumes, lembranças, questões morais, leituras) por meio de uma prosa fluida, oscilante, que aposta em suas
próprias hesitações como forma
de rejeitar representações unívocas e dogmáticas da realidade.
Por esse motivo, o ensaio não se
confunde com textos de crítica literária, embora possa se servir da
literatura como uma espécie de
mirante, como acontece com o livro de Rodrigo Petronio (do qual
acabei me desviando, talvez entusiasmado pela escrita errática dos
ensaístas).
O leitor acostumado com as exigências metodológicas dos trabalhos científicos certamente estranhará o fato de Petronio utilizar
fontes de segunda mão (ele menciona alguns autores, por exemplo, a partir de referências feitas
pelo latinista alemão Ernest Robert Curtius). Além disso, suas leituras, ainda que aguçadas, não
apresentam acréscimos teóricos à
bibliografia existente sobre autores como Lucrécio ou Pound.
Mas isso não constitui um defeito, pois "Transversal do Tempo" é
um livro estranho a essas exigências acadêmicas de ineditismo e
conhecimento profundo das fontes (o que em muitos casos Petronio tem de sobra, como podemos
constatar em sua análise de Góngora). Seu objetivo parece ser o
"auto-exercício da razão" (segundo a expressão de Silvio Lima) e a
"experiência sentimental" do intelecto (na definição de Adorno
para a singularidade da escrita ensaística).
É esse prazer do texto, expresso
na escolha cuidadosa das imagens
que ilustram o volume, que aproxima Rodrigo Petronio de uma
tradição que transforma livros,
autores, conceitos e raciocínios
em entidades vivas, em "personagens" que fazem do ensaio um gênero singular, no qual a escrita
teórica está no limiar da ficção.
Transversal do Tempo
Autor: Rodrigo Petronio
Editora: Fundação de Cultura Cidade do
Recife (tel. 0/xx/81/3224-3196)
Quanto: R$ 10 (190 págs.)
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