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São Paulo, sábado, 22 de março de 2003

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RODAPÉ

A prosa experimental do ensaio

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

À primeira vista, "Transversal do Tempo", de Rodrigo Petronio, é uma antologia de crítica literária sobre autores como Montaigne, Vico, Voltaire, Fernando Pessoa e Francis Ponge. No entanto, sua leitura nos lança em um tipo de escrita que está distante tanto do rigor acadêmico quanto da objetividade dos artigos de jornal.
Com uma prosa pessoal, sentenciosa, recheada de divagações sobre diferentes livros e escritores, os textos desse jovem autor paulista pertencem a um gênero pouco praticado hoje em dia: o ensaio.
Frequentemente vemos essa palavra aplicada a obras de teoria literária e a textos de sociologia, história ou filosofia. Nesses casos, ela serve para designar um texto de ocasião, mais ligeiro na forma e menos ambicioso no conteúdo do que grandes tratados ou teses.
Essa liberdade de espírito está, efetivamente, na raiz do próprio termo, que se tornou conhecido com os "Ensaios" de Montaigne, no século 16. Como mostra o crítico português Silvio Lima, em "Ensaio sobre a Essência do Ensaio", as versões da obra de Montaigne para o latim dão uma idéia do caráter experimental desse gênero que se opunha à austeridade intelectual e à impessoalidade dos tratados medievais.
Segundo Lima, o termo francês "essai" foi traduzido sucessivamente por palavras como "gustus" (de "gustare", saborear), "conatus" (esforço), "adumbratio" (esboço) ou "tentamen" (tentativa), sendo que a tradução mais fiel, que restituiria o termo francês a sua origem latina, seria "exagium" (exame).
Mas há também no ensaio, além desse empirismo que começa a se pronunciar com o Renascimento, um caráter intrinsecamente literário, uma preocupação formal que gerou uma tradição que chega até autores contemporâneos como Camus, Cioran ou Barthes, todos muito diferentes entre si, mas identificados com a "restituição literária da fluidez do mundo e da existência" de que fala Hugo Friedrich, com a busca de uma linguagem que, sem ser ficcional, capte a pluralidade das coisas (fatos cotidianos, costumes, lembranças, questões morais, leituras) por meio de uma prosa fluida, oscilante, que aposta em suas próprias hesitações como forma de rejeitar representações unívocas e dogmáticas da realidade.
Por esse motivo, o ensaio não se confunde com textos de crítica literária, embora possa se servir da literatura como uma espécie de mirante, como acontece com o livro de Rodrigo Petronio (do qual acabei me desviando, talvez entusiasmado pela escrita errática dos ensaístas).
O leitor acostumado com as exigências metodológicas dos trabalhos científicos certamente estranhará o fato de Petronio utilizar fontes de segunda mão (ele menciona alguns autores, por exemplo, a partir de referências feitas pelo latinista alemão Ernest Robert Curtius). Além disso, suas leituras, ainda que aguçadas, não apresentam acréscimos teóricos à bibliografia existente sobre autores como Lucrécio ou Pound.
Mas isso não constitui um defeito, pois "Transversal do Tempo" é um livro estranho a essas exigências acadêmicas de ineditismo e conhecimento profundo das fontes (o que em muitos casos Petronio tem de sobra, como podemos constatar em sua análise de Góngora). Seu objetivo parece ser o "auto-exercício da razão" (segundo a expressão de Silvio Lima) e a "experiência sentimental" do intelecto (na definição de Adorno para a singularidade da escrita ensaística).
É esse prazer do texto, expresso na escolha cuidadosa das imagens que ilustram o volume, que aproxima Rodrigo Petronio de uma tradição que transforma livros, autores, conceitos e raciocínios em entidades vivas, em "personagens" que fazem do ensaio um gênero singular, no qual a escrita teórica está no limiar da ficção.


Transversal do Tempo    
Autor: Rodrigo Petronio
Editora: Fundação de Cultura Cidade do Recife (tel. 0/xx/81/3224-3196)
Quanto: R$ 10 (190 págs.)



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