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São Paulo, sábado, 22 de março de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

"POSSESSÕES"

Fraco romance policial da intelectual usa ironia como muleta

Kristeva reduz literatura a pretexto para suas idéias

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O que leva intelectuais e acadêmicos a se voltarem para o romance policial quando pensam em escrever ficção?
Antes de mais nada, o jogo e a ironia de usar um gênero popular como teatro de idéias às vezes as mais sofisticadas -assim como por vezes especialistas em determinados períodos da história da humanidade buscam no romance histórico um palco para a sua erudição. Além do alcance de público, é claro. Afinal, o romance policial é hoje um dos maiores lugares-comuns da literatura.
Julia Kristeva nasceu na Bulgária e se mudou para Paris nos anos 60. Foi aluna de Roland Barthes. Participou do grupo da revista "Tel Quel". Casou-se com o escritor Philippe Sollers. Seu primeiro romance "Os Samurais", de 1990, é resultado de suas experiências nesse círculo intelectual parisiense.
Professora de linguística e psicanalista, Kristeva acabou sendo transformada em referência pelas feministas das universidades americanas. Publicou vários livros sobre assuntos relacionados à semiótica e à psicanálise, que vão do "corpo materno na constituição da subjetividade" ao "horror como fundamento da opressão e da discriminação". Temas que estão presentes em seu romance policial "Possessões", de 1996, agora lançado no Brasil.

A jornalista e o crime
No livro, uma jornalista francesa viaja a um país chamado Santa Bárbara, centro do tráfico de matérias radioativas da ex-União Soviética e cujo governo, dominado pela corrupção, tenta se equilibrar equidistante entre "islamitas barbudos e ex-militares vermelhos". Um país onde, para quem ainda tinha alguma dúvida, há um balneário chamado Burgas, como na Bulgária.
A jornalista francesa, que passou a infância em Santa Bárbara e tem ali uma grande amiga, visita o país justamente para fazer uma matéria sobre os escândalos políticos. Na primeira noite, é convidada para um jantar na casa da amiga, uma rica tradutora. Também foram convidados o assistente da anfitriã, a fonoaudióloga do seu filho surdo e o psiquiatra de um grande hospital cujo orçamento foi drasticamente cortado pelo governo.
No dia seguinte, a anfitriã é encontrada decapitada, com uma faca espetada no peito. E a jornalista, como não poderia deixar de ser, vai acabar se associando à investigação de um delegado melômano e erudito, como também não poderia deixar de ser, que convoca os convivas da véspera para depoimentos à moda de Agatha Christie.
Em princípio, a ironia parece predominar. E o leitor tem a impressão de que vai ler um romance inteligente. A vítima, uma intelectual à sua maneira, assim como a própria Kristeva, chamava a cabeça de "meu órgão sexual". Agora, está degolada e ninguém sabe onde foi parar o tal do órgão.
Infelizmente, a narradora continua com a cabeça no lugar, o que lhe permite digressões intermináveis e repetitivas sobre os assuntos que mais interessam a autora, a começar pela psicanálise e o corpo materno.
Kristeva usa seus personagens para dizer o que pensa. E se aproveita do romance policial para fazer a crítica dos novos tempos, da banalização da literatura, para lamentar que já não haja livros nem leitores etc.
Nestas circunstâncias, no entanto, a crítica ganha ares de ladainha, para não dizer de falsa santidade, já que a própria autora reduz a literatura a pretexto para a transmissão de suas idéias, veículo de uma série de clichês.
Costuma ser estúpida a crítica que identifica o que dizem os personagens às idéias do autor, o que torna "Possessões" tanto mais constrangedor. A ironia aqui é só uma bengala. Como romance policial, o livro é fraco. A narradora-jornalista pensa demais e fala demais para si mesma. E nem a crítica que o romance destila contra a mídia e os jornalistas é suficiente para não ver nela um alter ego da autora.


Possessões
Possessions
 
Autora: Julia Kristeva
Tradutora: Maria Helena F. Martins
Editora: Rocco
Quanto: R$ 29 (212 págs.)



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