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LIVRO/LANÇAMENTO
"POSSESSÕES"
Fraco romance policial da intelectual usa ironia como muleta
Kristeva reduz literatura a pretexto para suas idéias
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O que leva intelectuais e acadêmicos a se voltarem para o
romance policial quando pensam
em escrever ficção?
Antes de mais nada, o jogo e a
ironia de usar um gênero popular
como teatro de idéias às vezes as
mais sofisticadas -assim como
por vezes especialistas em determinados períodos da história da
humanidade buscam no romance
histórico um palco para a sua erudição. Além do alcance de público, é claro. Afinal, o romance policial é hoje um dos maiores lugares-comuns da literatura.
Julia Kristeva nasceu na Bulgária e se mudou para Paris nos
anos 60. Foi aluna de Roland Barthes. Participou do grupo da revista "Tel Quel". Casou-se com o
escritor Philippe Sollers. Seu primeiro romance "Os Samurais",
de 1990, é resultado de suas experiências nesse círculo intelectual
parisiense.
Professora de linguística e psicanalista, Kristeva acabou sendo
transformada em referência pelas
feministas das universidades
americanas. Publicou vários livros sobre assuntos relacionados
à semiótica e à psicanálise, que
vão do "corpo materno na constituição da subjetividade" ao "horror como fundamento da opressão e da discriminação". Temas
que estão presentes em seu romance policial "Possessões", de
1996, agora lançado no Brasil.
A jornalista e o crime
No livro, uma jornalista francesa viaja a um país chamado Santa
Bárbara, centro do tráfico de matérias radioativas da ex-União Soviética e cujo governo, dominado
pela corrupção, tenta se equilibrar
equidistante entre "islamitas barbudos e ex-militares vermelhos".
Um país onde, para quem ainda
tinha alguma dúvida, há um balneário chamado Burgas, como na
Bulgária.
A jornalista francesa, que passou a infância em Santa Bárbara e
tem ali uma grande amiga, visita o
país justamente para fazer uma
matéria sobre os escândalos políticos. Na primeira noite, é convidada para um jantar na casa da
amiga, uma rica tradutora. Também foram convidados o assistente da anfitriã, a fonoaudióloga
do seu filho surdo e o psiquiatra
de um grande hospital cujo orçamento foi drasticamente cortado
pelo governo.
No dia seguinte, a anfitriã é encontrada decapitada, com uma
faca espetada no peito. E a jornalista, como não poderia deixar de
ser, vai acabar se associando à investigação de um delegado melômano e erudito, como também
não poderia deixar de ser, que
convoca os convivas da véspera
para depoimentos à moda de
Agatha Christie.
Em princípio, a ironia parece
predominar. E o leitor tem a impressão de que vai ler um romance inteligente. A vítima, uma intelectual à sua maneira, assim como
a própria Kristeva, chamava a cabeça de "meu órgão sexual". Agora, está degolada e ninguém sabe
onde foi parar o tal do órgão.
Infelizmente, a narradora continua com a cabeça no lugar, o que
lhe permite digressões intermináveis e repetitivas sobre os assuntos que mais interessam a autora,
a começar pela psicanálise e o corpo materno.
Kristeva usa seus personagens
para dizer o que pensa. E se aproveita do romance policial para fazer a crítica dos novos tempos, da
banalização da literatura, para lamentar que já não haja livros nem
leitores etc.
Nestas circunstâncias, no entanto, a crítica ganha ares de ladainha, para não dizer de falsa
santidade, já que a própria autora
reduz a literatura a pretexto para a
transmissão de suas idéias, veículo de uma série de clichês.
Costuma ser estúpida a crítica
que identifica o que dizem os personagens às idéias do autor, o que
torna "Possessões" tanto mais
constrangedor. A ironia aqui é só
uma bengala. Como romance policial, o livro é fraco. A narradora-jornalista pensa demais e fala demais para si mesma. E nem a crítica que o romance destila contra a
mídia e os jornalistas é suficiente
para não ver nela um alter ego da
autora.
Possessões
Possessions
Autora: Julia Kristeva
Tradutora: Maria Helena F. Martins
Editora: Rocco
Quanto: R$ 29 (212 págs.)
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