São Paulo, quarta-feira, 22 de março de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARTAS DA EUROPA

Previsões sobre a Revolução em França

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando Paris sai à rua, eu presto sempre atenção. Em 1789, Edmund Burke confrontava-se com a queda da Bastilha e as suas "Reflexões sobre a Revolução em França" eram publicadas no ano seguinte. Ninguém gostou. A começar pelo seu próprio partido Whig, liderado à época por Charles James Fox.
Pergunta corrente: como era possível que um dos mais notáveis defensores dos colonos americanos, dos católicos irlandeses, dos nativos da Índia, fosse capaz de condenar a gloriosa luta pela liberdade que a França exibia perante o mundo?
Burke respondeu: a Revolução Francesa não era uma luta pela liberdade. Era, pelo contrário, o início de uma tirania que acabaria por devorar os seus filhos: partindo de ideais abstratos sem qualquer contato com a realidade, os revolucionários limitavam-se a destruir sem reformar; e, ao destruírem sem reformar, condenavam a França, e até a Europa, a um longo ciclo de violência.
Escusado será dizer que Burke acertou. Mais ainda: acertou por antecipação. As suas observações, escritas ainda em 1790, prenunciavam já a execução de Luís 16 e da rainha; as guerras revolucionárias iniciadas com a Áustria; a Convenção Nacional, a chegada de Robespierre e o início do Terror; e, claro, Bonaparte e as fantasias imperialistas de Paris. Nos primeiros meses da Revolução, estava já escrito todo o destino da Revolução.
Como, aliás, está escrito todo o futuro da França, e até da Europa, num insignificante pormenor laboral que dominou as primeiras páginas dos últimos dias. Os estudantes franceses não desejam um trabalho precário porque acreditam, com patética inocência, que é possível garantir trabalho para todos e privilégios para todos? A inocência, que faz parte da espécie, não altera a realidade: o "modelo francês", uma herança de De Gaulle baseada em forte regulação econômica e num pesado Estado Social, é impossível de manter num mundo que, naturalmente, mudou. E ao qual a França não se adaptou, nem adapta.
Resultados à vista: um em cada dez franceses não tem trabalho. A cifra sobe para 25% entre os menores de 30 e para 40% (mínimo) entre a comunidade imigrante, crescentemente atirada para as margens da "sociedade respeitável". O contrato de primeiro emprego, ao facilitar a contratação e o despedimento nos dois primeiros anos, não é a solução ideal? Fato. Mas a solução não é ideal porque o mundo deixou de ser ideal: não é apenas a globalização "de fora", vinda da China ou da Índia, que ameaça postos de trabalho e promete, se a Europa persistir em privilégios passados, mais desemprego, mais protestos e mais violência.
A globalização "de dentro", da própria União Européia, também não vai parar. Exceto se a elite política francesa levar o "patriotismo econômico" até às últimas conseqüências, fechando fronteiras e destruindo a própria razão de ser da União Européia. Já está acontecendo.
Em 1790, Burke vislumbrava nos primeiros acontecimentos de Paris o aperitivo ligeiro para um prato mais pesado. Não pretendo chegar a tanto. Mas, com a devida vênia ao velho Edmund, três presságios pessoais perante o espetáculo corrente.
Primeiro, a incapacidade da França, e da Europa, para liberalizar o seu mercado de trabalho vai infligir mais desemprego, mais pobreza e mais conflito.
Segundo, o "patriotismo econômico" da União Européia, crescente na França mas visível também na Espanha e até na recém-chegada Polônia, acabará por enterrar a Europa como espaço de livre circulação de pessoas, bens, capitais e serviços.
E, terceiro, uma União Européia condenada nos seus alicerces permitirá um regresso aos nacionalismos do passado: os exatos nacionalismos que mergulharam o continente no pior.
Quem viver, verá.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Artes plásticas: Projeto Guignard busca obras de coleções
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.