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CARTAS DA EUROPA
Previsões sobre a Revolução em França
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Quando Paris sai à rua, eu
presto sempre atenção. Em
1789, Edmund Burke confrontava-se com a queda da Bastilha e
as suas "Reflexões sobre a Revolução em França" eram publicadas
no ano seguinte. Ninguém gostou.
A começar pelo seu próprio partido Whig, liderado à época por
Charles James Fox.
Pergunta corrente: como era
possível que um dos mais notáveis defensores dos colonos americanos, dos católicos irlandeses,
dos nativos da Índia, fosse capaz
de condenar a gloriosa luta pela
liberdade que a França exibia perante o mundo?
Burke respondeu: a Revolução
Francesa não era uma luta pela
liberdade. Era, pelo contrário, o
início de uma tirania que acabaria por devorar os seus filhos: partindo de ideais abstratos sem
qualquer contato com a realidade, os revolucionários limitavam-se a destruir sem reformar; e, ao
destruírem sem reformar, condenavam a França, e até a Europa,
a um longo ciclo de violência.
Escusado será dizer que Burke
acertou. Mais ainda: acertou por
antecipação. As suas observações,
escritas ainda em 1790, prenunciavam já a execução de Luís 16 e
da rainha; as guerras revolucionárias iniciadas com a Áustria; a
Convenção Nacional, a chegada
de Robespierre e o início do Terror; e, claro, Bonaparte e as fantasias imperialistas de Paris. Nos
primeiros meses da Revolução, estava já escrito todo o destino da
Revolução.
Como, aliás, está escrito todo o
futuro da França, e até da Europa, num insignificante pormenor
laboral que dominou as primeiras páginas dos últimos dias. Os
estudantes franceses não desejam
um trabalho precário porque
acreditam, com patética inocência, que é possível garantir trabalho para todos e privilégios para
todos? A inocência, que faz parte
da espécie, não altera a realidade:
o "modelo francês", uma herança
de De Gaulle baseada em forte regulação econômica e num pesado
Estado Social, é impossível de
manter num mundo que, naturalmente, mudou. E ao qual a
França não se adaptou, nem
adapta.
Resultados à vista: um em cada
dez franceses não tem trabalho. A
cifra sobe para 25% entre os menores de 30 e para 40% (mínimo)
entre a comunidade imigrante,
crescentemente atirada para as
margens da "sociedade respeitável". O contrato de primeiro emprego, ao facilitar a contratação e
o despedimento nos dois primeiros anos, não é a solução ideal?
Fato. Mas a solução não é ideal
porque o mundo deixou de ser
ideal: não é apenas a globalização "de fora", vinda da China ou
da Índia, que ameaça postos de
trabalho e promete, se a Europa
persistir em privilégios passados,
mais desemprego, mais protestos
e mais violência.
A globalização "de dentro", da
própria União Européia, também
não vai parar. Exceto se a elite política francesa levar o "patriotismo econômico" até às últimas
conseqüências, fechando fronteiras e destruindo a própria razão
de ser da União Européia. Já está
acontecendo.
Em 1790, Burke vislumbrava
nos primeiros acontecimentos de
Paris o aperitivo ligeiro para um
prato mais pesado. Não pretendo
chegar a tanto. Mas, com a devida vênia ao velho Edmund, três
presságios pessoais perante o espetáculo corrente.
Primeiro, a incapacidade da
França, e da Europa, para liberalizar o seu mercado de trabalho
vai infligir mais desemprego,
mais pobreza e mais conflito.
Segundo, o "patriotismo econômico" da União Européia, crescente na França mas visível também na Espanha e até na recém-chegada Polônia, acabará por enterrar a Europa como espaço de
livre circulação de pessoas, bens,
capitais e serviços.
E, terceiro, uma União Européia condenada nos seus alicerces
permitirá um regresso aos nacionalismos do passado: os exatos
nacionalismos que mergulharam
o continente no pior.
Quem viver, verá.
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