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MARCELO COELHO
"O Pasquim" e sua sombra
Pensei que, com o tempo, a
maior parte daquilo tivesse
perdido a graça. Mas a seleção de
páginas do "Pasquim" (volume 1,
1969-1971), recém-publicada pela
editora Desiderata, com organização e apresentação de Jaguar e
Sérgio Augusto, ainda hoje traz
coisas divertidíssimas, inteligentes, ótimas de ler.
Claro que um dos critérios da
seleção foi eliminar os artigos
mais datados. Mesmo assim, tratando-se de um semanário de humor lançado poucos meses depois
do AI-5, eu imaginava que a função de catarse, de puro desafogo
político, respondesse por muito do
seu sucesso na época; e que, passado o terror daqueles anos, nas
graças do "Pasquim" transparecesse um sentimento de amargura, desnorteio e pânico.
É bem o contrário: as páginas
dessa antologia constituem até
hoje uma lição de coloquialidade,
de leveza e de liberdade jornalística. Mesmo contando com um
conjunto de colaboradores muito
variado -de Otto Maria Carpeaux a Ziraldo, de Caetano Veloso a Paulo Francis, de Luiz Carlos Maciel a Millôr Fernandes-,
o "Pasquim" tinha um "projeto",
como se diz no jargão jornalístico,
coerente ao extremo, capaz de
dar um "ar de família" a textos de
origem diversa.
Dizem que Paulo Francis, antes
pesado e sisudo, aprendeu no
"Pasquim" os segredos da velocidade, da elipse e do desbocamento característicos de seu estilo posterior. Não foi, ao que tudo indica, um caso isolado. Basta ler, nas
primeiras páginas desta antologia, o curto texto de Otto Maria
Carpeaux sobre as gravuras eróticas de Picasso para ver as subversões de linguagem que o "Pasquim" era capaz de sugerir a seus
articulistas.
Essa marca é tão forte no "Pasquim" que hoje temos a impressão de que a luta do jornal contra
a censura concentrava-se mais na
questão do palavrão -haja vista
a famosa entrevista com Leila Diniz, incluída nesta antologia com
todos os seus asteriscos- do que
no teor político dos textos. O tema
retorna com insistência: seja numa longa teorização sobre a pornografia, escrita por Rubem Fonseca, seja no recurso ao "pasquinês", com aqueles "duca", "praca" etc. que em seu tempo conquistaram ampla aceitação.
Temos, muitas vezes, a impressão de surpreender os autores no
meio de uma conversa, sem que
recorram a introduções, esclarecimentos de contexto ou andaimes
de sintaxe. Mesmo quando não
estão "dizendo nada", numa prosa abstrata de cronista, eles não
perdem tempo. Veja-se o início
deste texto que Ivan Lessa mandava de Londres.
"Agora falando de saudades:
saudades mesmo eu tenho de pastel e fanho. Pastel de queijo aqui
não tem, fanho não é a mesma
coisa. Fanho bom é aquele mal-humorado, agressivo. Fanho acha
que a humanidade está por fora,
que tudo isso é uma safadeza
enorme pra cima dele...", e por aí
vai.
A razão desse coloquialismo,
dessa intimidade por escrito, não
era neutra do ponto de vista sociológico. Correspondia, certamente, ao espírito de gueto, ou de
"patota", que tomava conta do
jornal. Tanto por uma circunstância objetiva (a intelectualidade de esquerda estava, é claro, sitiada em meio à perseguição do
regime militar) quanto pela vontade dos próprios participantes
do "Pasquim".
Chama a atenção, e seria mesmo irritante se não tivesse seu sabor característico, a freqüência
com que todos se citavam, se auto-elogiavam, se perdiam numa
"transa" (hum!) entre eles mesmos. A redação se apresentava
como uma permanente festa
masculina, na qual os sintomas
de homofobia só não eram mais
obsessivos do que a menção, a toda hora e todo pretexto, às marcas do uísque escocês -Buchanan's, em especial- que todos se
orgulhavam de consumir em
quantidades industriais.
Acrescente-se a isto o assumidíssimo paroquialismo ipanemense -com clássicas tiradas
antipaulistas para acompanhar- e o sucesso enorme de "O
Pasquim" (tiragens de 200 mil
exemplares, sete meses depois de
seu primeiro número) talvez tenha outras razões, para além de
sua evidente qualidade jornalística e do papel liberador que certamente teve, num Brasil ainda puritano.
Desconfio que, pelo avesso, "O
Pasquim" também representou
aquilo que seria o lado mais dinâmico, e também questionável, da
economia brasileira nos anos 70.
Na era do milagre e do avanço
das telecomunicações, a técnica
publicitária insistia fortemente
na idéia de que a classe média ascendia a um plano de privilégio e
exclusividades invejáveis. Passava-se do fusquinha às pretensões
do Chevrolet Opala e do Ford Galaxy. Ao mesmo tempo, a Rede
Globo inovava ao introduzir, nos
seus intervalos comerciais, chamadas para seus próprios programas.
Ibrahim Sued foi o primeiro entrevistado do "Pasquim". Uma
ótica de privilégio, mesmo por
parte de um grupo que objetivamente estava entre os perseguidos
do regime militar, surge quase como estratégia compensatória em
vários textos.
"Estou aqui na cobertura do
meu bom e velho [Rubem] Braga,
o cavaleiro do Atlântico, em gozo
de justas férias pascoalinas, ouvindo César Franck na Rádio Ministério da Educação e saboreando um gim-tônica sazonado com
uma rodela de limão da horta
suspensa do bravo capitão...". Assim escreve Vinícius de Moraes,
num texto sobre Chico Buarque.
"Top, top", dizia o Fradinho de
Henfil, brincando sadicamente
com a desgraça alheia. É sobre
Sade o primeiro texto de Paulo
Francis para o jornal. Como em
toda época de terror, também
aqui a revolta e a liberdade dependiam de uma parte de sombras para florescer.
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