São Paulo, quarta-feira, 22 de março de 2006

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MARCELO COELHO

"O Pasquim" e sua sombra

Pensei que, com o tempo, a maior parte daquilo tivesse perdido a graça. Mas a seleção de páginas do "Pasquim" (volume 1, 1969-1971), recém-publicada pela editora Desiderata, com organização e apresentação de Jaguar e Sérgio Augusto, ainda hoje traz coisas divertidíssimas, inteligentes, ótimas de ler.
Claro que um dos critérios da seleção foi eliminar os artigos mais datados. Mesmo assim, tratando-se de um semanário de humor lançado poucos meses depois do AI-5, eu imaginava que a função de catarse, de puro desafogo político, respondesse por muito do seu sucesso na época; e que, passado o terror daqueles anos, nas graças do "Pasquim" transparecesse um sentimento de amargura, desnorteio e pânico.
É bem o contrário: as páginas dessa antologia constituem até hoje uma lição de coloquialidade, de leveza e de liberdade jornalística. Mesmo contando com um conjunto de colaboradores muito variado -de Otto Maria Carpeaux a Ziraldo, de Caetano Veloso a Paulo Francis, de Luiz Carlos Maciel a Millôr Fernandes-, o "Pasquim" tinha um "projeto", como se diz no jargão jornalístico, coerente ao extremo, capaz de dar um "ar de família" a textos de origem diversa.
Dizem que Paulo Francis, antes pesado e sisudo, aprendeu no "Pasquim" os segredos da velocidade, da elipse e do desbocamento característicos de seu estilo posterior. Não foi, ao que tudo indica, um caso isolado. Basta ler, nas primeiras páginas desta antologia, o curto texto de Otto Maria Carpeaux sobre as gravuras eróticas de Picasso para ver as subversões de linguagem que o "Pasquim" era capaz de sugerir a seus articulistas.
Essa marca é tão forte no "Pasquim" que hoje temos a impressão de que a luta do jornal contra a censura concentrava-se mais na questão do palavrão -haja vista a famosa entrevista com Leila Diniz, incluída nesta antologia com todos os seus asteriscos- do que no teor político dos textos. O tema retorna com insistência: seja numa longa teorização sobre a pornografia, escrita por Rubem Fonseca, seja no recurso ao "pasquinês", com aqueles "duca", "praca" etc. que em seu tempo conquistaram ampla aceitação.
Temos, muitas vezes, a impressão de surpreender os autores no meio de uma conversa, sem que recorram a introduções, esclarecimentos de contexto ou andaimes de sintaxe. Mesmo quando não estão "dizendo nada", numa prosa abstrata de cronista, eles não perdem tempo. Veja-se o início deste texto que Ivan Lessa mandava de Londres.
"Agora falando de saudades: saudades mesmo eu tenho de pastel e fanho. Pastel de queijo aqui não tem, fanho não é a mesma coisa. Fanho bom é aquele mal-humorado, agressivo. Fanho acha que a humanidade está por fora, que tudo isso é uma safadeza enorme pra cima dele...", e por aí vai.
A razão desse coloquialismo, dessa intimidade por escrito, não era neutra do ponto de vista sociológico. Correspondia, certamente, ao espírito de gueto, ou de "patota", que tomava conta do jornal. Tanto por uma circunstância objetiva (a intelectualidade de esquerda estava, é claro, sitiada em meio à perseguição do regime militar) quanto pela vontade dos próprios participantes do "Pasquim".
Chama a atenção, e seria mesmo irritante se não tivesse seu sabor característico, a freqüência com que todos se citavam, se auto-elogiavam, se perdiam numa "transa" (hum!) entre eles mesmos. A redação se apresentava como uma permanente festa masculina, na qual os sintomas de homofobia só não eram mais obsessivos do que a menção, a toda hora e todo pretexto, às marcas do uísque escocês -Buchanan's, em especial- que todos se orgulhavam de consumir em quantidades industriais.
Acrescente-se a isto o assumidíssimo paroquialismo ipanemense -com clássicas tiradas antipaulistas para acompanhar- e o sucesso enorme de "O Pasquim" (tiragens de 200 mil exemplares, sete meses depois de seu primeiro número) talvez tenha outras razões, para além de sua evidente qualidade jornalística e do papel liberador que certamente teve, num Brasil ainda puritano.
Desconfio que, pelo avesso, "O Pasquim" também representou aquilo que seria o lado mais dinâmico, e também questionável, da economia brasileira nos anos 70. Na era do milagre e do avanço das telecomunicações, a técnica publicitária insistia fortemente na idéia de que a classe média ascendia a um plano de privilégio e exclusividades invejáveis. Passava-se do fusquinha às pretensões do Chevrolet Opala e do Ford Galaxy. Ao mesmo tempo, a Rede Globo inovava ao introduzir, nos seus intervalos comerciais, chamadas para seus próprios programas.
Ibrahim Sued foi o primeiro entrevistado do "Pasquim". Uma ótica de privilégio, mesmo por parte de um grupo que objetivamente estava entre os perseguidos do regime militar, surge quase como estratégia compensatória em vários textos.
"Estou aqui na cobertura do meu bom e velho [Rubem] Braga, o cavaleiro do Atlântico, em gozo de justas férias pascoalinas, ouvindo César Franck na Rádio Ministério da Educação e saboreando um gim-tônica sazonado com uma rodela de limão da horta suspensa do bravo capitão...". Assim escreve Vinícius de Moraes, num texto sobre Chico Buarque.
"Top, top", dizia o Fradinho de Henfil, brincando sadicamente com a desgraça alheia. É sobre Sade o primeiro texto de Paulo Francis para o jornal. Como em toda época de terror, também aqui a revolta e a liberdade dependiam de uma parte de sombras para florescer.


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