São Paulo, sábado, 22 de abril de 2000


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LITERATURA
Bloom se veste de Falstaff em "Invenção"

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local


Aos 16 anos, em 1946, Harold Bloom viu o ator Ralph Richardson fazendo Falstaff em "Henrique 4º". Foi, escreve o crítico literário em "Shakespeare: A Invenção do Humano", que sai agora no Brasil, "a experiência teatral decisiva em minha vida". Laurence Olivier também estava no palco, mas o adolescente não queria saber dele. "Quando (Richardson) saía de cena, na platéia sentíamos um vazio e esperávamos, impacientes, o momento em que Shakespeare colocaria Sir John, mais uma vez, diante de nós."
Aquela experiência, diz Bloom, o acompanhou "pela vida afora" e foi o "ponto de partida" do livro, lançado há dois anos nos EUA, onde ele é professor em Yale e na New York University. O relato da experiência e o amor declarado de Bloom por Falstaff, personagem amoral, covarde, por vezes ladrão, mas sobretudo engraçado, crítico, pateticamente inteligente, se distribuem de maneira recorrente -quase nauseante- pelas 896 páginas do livro.
A tese ou o "tropo crítico" central de "A Invenção do Humano" é que Shakespeare criou a personalidade humana, como hoje a vemos, com seus personagens. Por exemplo: Bloom não passa de um Falstaff. "Contrariamente às atuais desmitificações de grandeza cultural, continuo a insistir que Shakespeare nos inventou (a todos nós) mais do que nós o inventamos", escreve ele. "Acusar Shakespeare de ter inventado, por exemplo, Harold Bloom não implica, necessariamente, a atribuição de valor dramático a Bloom; trata-se apenas de ver Bloom como paródia de Falstaff."
Tomada ao pé da letra, a "invenção do humano" foi uma provocação que recebeu o troco esperado da crítica americana. Mas é um livro de Falstaff, não de Bloom; certamente não do autor de "A Angústia da Influência", quase três décadas atrás. O crítico escreve agora sobre Freud, influência decisiva em seu livro edipiano de 73: "Freud, querendo ser cientista, equivocadamente, reduziu a sua própria genialidade. Shakespeare não reduz os personagens às suas supostas patologias ou romances familiares. Em Freud, somos predeterminados, e de modo mais ou menos previsível".
Bloom não reduz Shakespeare em "A Invenção do Humano". Bardólatra assumido, escreve sobre as peças uma a uma com superlativos repetitivos que, muitas vezes também contraditórios, chegam a irritar. Opositor do que chama de Escola do Ressentimento, das leituras feministas, marxistas e outras que acredita limitadoras, os seus modelos são os críticos "humanistas" -como Samuel Johnson e, em especial, A.C. Bradley, cujo "Shakespearean Tragedy", de 1904, foi o grande eixo da crítica shakespeariana no século 20.
Como em Bradley, que também escreveu seu livro a partir de palestras universitárias, a personagem é o que importa para Bloom. Ele escreve exaustivamente sobre a interiorização do ser, a partir de Falstaff em "Henrique 4º". Também a exemplo de Bradley, Bloom se põe contrário às encenações de Shakespeare, que reputa limitadoras. A diferença é que "A Invenção do Humano" relata seguidamente as produções que viu, quase que a cada novo texto -como a provar que, ao contrário do que diziam de Bradley, Bloom conhece sim a encenação shakespeariana contemporânea. Entre outros, registre-se, ele "detona" o diretor Peter Brook e o ator Ralph Fiennes.
Por maior que seja seu amor por Falstaff (que ele insinua ser o preferido de Shakespeare e "mais famoso até do que Hamlet", na época) e ainda que seja verdadeira sua predileção por "Macbeth" (o que ele não consegue justificar convincentemente), Bloom não escapa de "Hamlet", a peça e o personagem. É o grande ensaio do livro, aquele em que Bloom/ Falstaff está em plena forma, ele e seu "tropo crítico", suas teses provocativas e amalucadas.
Ele tem uma para cada peça. Em "Medida por Medida", o grande personagem seria Bernardino, que não fala mais do que uma dezena de versos, mas recusa a opressão como um "prisioneiro dissoluto". Em "As You Like It" ou "Como Gostais", numa das traduções estranhas da edição, Bloom encontra em Rosalinda o seu modelo de antifeminista. Em "Rei Lear", afirma que o modelo para o protagonista foi o rei Salomão e que o inescrupuloso Edmundo "foi criado à imagem de Christopher Marlowe".
Mas é em "Hamlet" que Bloom viaja mais -e mais deliciosamente. O ensaio é dividido em duas linhas maiores. Na primeira, faz a defesa apaixonada de uma hipótese esdrúxula: "Ur-Hamlet", a peça intitulada "Hamlet" que surgiu uns dez anos antes e que se costuma dizer que foi escrita por Thomas Kyd, foi na verdade a estréia de Shakespeare no teatro. A partir de tal presunção, que Bloom investiga como um detetive e sustenta como um advogado, ele propõe que "Hamlet" é o resultado da revisão contínua do texto, por cerca de 15 anos.
A hipótese é herética o bastante junto aos "scholars" shakespearianos, mas Bloom vai além e abraça no ensaio a visão nietzschiana de Hamlet -de que ele demora a agir porque "enxerga a verdadeira essência das coisas", a "verdade terrível, que interfere com a motivação de agir". Bloom analisa Falstaff sob a mesma luz, de forma brilhante, insinuando que Falstaff é Hamlet, amanhã. O redemoinho em torno do niilismo de Hamlet prossegue com outra citação de Nietzsche, que terminou sendo a epígrafe do livro, numa auto-ironia falstaffiana de Harold Bloom: "O que expressamos com palavras já está morto em nossos corações".


Avaliação:    


Livro: Shakespeare: A Invenção do Humano Autor: Harold Bloom
Tradutor: José Roberto O'Shea Editora: Objetiva (tel. 0/xx/21/556-7824) Quanto: R$ 64,90 (896 págs.)


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