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LITERATURA
Bloom se veste de Falstaff em "Invenção"
NELSON DE SÁ
da Reportagem Local
Aos 16 anos, em
1946, Harold
Bloom viu o ator
Ralph Richardson
fazendo Falstaff em
"Henrique 4º". Foi,
escreve o crítico literário em
"Shakespeare: A Invenção do Humano", que sai agora no Brasil, "a
experiência teatral decisiva em
minha vida". Laurence Olivier
também estava no palco, mas o
adolescente não queria saber dele.
"Quando (Richardson) saía de cena, na platéia sentíamos um vazio
e esperávamos, impacientes, o
momento em que Shakespeare
colocaria Sir John, mais uma vez,
diante de nós."
Aquela experiência, diz Bloom,
o acompanhou "pela vida afora" e
foi o "ponto de partida" do livro,
lançado há dois anos nos EUA,
onde ele é professor em Yale e na
New York University. O relato da
experiência e o amor declarado de
Bloom por Falstaff, personagem
amoral, covarde, por vezes ladrão, mas sobretudo engraçado,
crítico, pateticamente inteligente,
se distribuem de maneira recorrente -quase nauseante- pelas
896 páginas do livro.
A tese ou o "tropo crítico" central de "A Invenção do Humano"
é que Shakespeare criou a personalidade humana, como hoje a
vemos, com seus personagens.
Por exemplo: Bloom não passa de
um Falstaff. "Contrariamente às
atuais desmitificações de grandeza cultural, continuo a insistir que
Shakespeare nos inventou (a todos nós) mais do que nós o inventamos", escreve ele. "Acusar Shakespeare de ter inventado, por
exemplo, Harold Bloom não implica, necessariamente, a atribuição de valor dramático a Bloom;
trata-se apenas de ver Bloom como paródia de Falstaff."
Tomada ao pé da letra, a "invenção do humano" foi uma provocação que recebeu o troco esperado da crítica americana. Mas é um
livro de Falstaff, não de Bloom;
certamente não do autor de "A
Angústia da Influência", quase
três décadas atrás. O crítico escreve agora sobre Freud, influência
decisiva em seu livro edipiano de
73: "Freud, querendo ser cientista, equivocadamente, reduziu a
sua própria genialidade. Shakespeare não reduz os personagens
às suas supostas patologias ou romances familiares. Em Freud, somos predeterminados, e de modo
mais ou menos previsível".
Bloom não reduz Shakespeare
em "A Invenção do Humano".
Bardólatra assumido, escreve sobre as peças uma a uma com superlativos repetitivos que, muitas
vezes também contraditórios,
chegam a irritar. Opositor do que
chama de Escola do Ressentimento, das leituras feministas, marxistas e outras que acredita limitadoras, os seus modelos são os críticos "humanistas" -como Samuel Johnson e, em especial, A.C.
Bradley, cujo "Shakespearean
Tragedy", de 1904, foi o grande eixo da crítica shakespeariana no
século 20.
Como em Bradley, que também
escreveu seu livro a partir de palestras universitárias, a personagem é o que importa para Bloom.
Ele escreve exaustivamente sobre
a interiorização do ser, a partir de
Falstaff em "Henrique 4º". Também a exemplo de Bradley,
Bloom se põe contrário às encenações de Shakespeare, que reputa limitadoras. A diferença é que
"A Invenção do Humano" relata
seguidamente as produções que
viu, quase que a cada novo texto
-como a provar que, ao contrário do que diziam de Bradley,
Bloom conhece sim a encenação
shakespeariana contemporânea.
Entre outros, registre-se, ele "detona" o diretor Peter Brook e o
ator Ralph Fiennes.
Por maior que seja seu amor
por Falstaff (que ele insinua ser o
preferido de Shakespeare e "mais
famoso até do que Hamlet", na
época) e ainda que seja verdadeira sua predileção por "Macbeth"
(o que ele não consegue justificar
convincentemente), Bloom não
escapa de "Hamlet", a peça e o
personagem. É o grande ensaio
do livro, aquele em que Bloom/
Falstaff está em plena forma, ele e
seu "tropo crítico", suas teses provocativas e amalucadas.
Ele tem uma para cada peça. Em
"Medida por Medida", o grande
personagem seria Bernardino,
que não fala mais do que uma dezena de versos, mas recusa a
opressão como um "prisioneiro
dissoluto". Em "As You Like It"
ou "Como Gostais", numa das
traduções estranhas da edição,
Bloom encontra em Rosalinda o
seu modelo de antifeminista. Em
"Rei Lear", afirma que o modelo
para o protagonista foi o rei Salomão e que o inescrupuloso Edmundo "foi criado à imagem de
Christopher Marlowe".
Mas é em "Hamlet" que Bloom
viaja mais -e mais deliciosamente. O ensaio é dividido em
duas linhas maiores. Na primeira,
faz a defesa apaixonada de uma
hipótese esdrúxula: "Ur-Hamlet",
a peça intitulada "Hamlet" que
surgiu uns dez anos antes e que se
costuma dizer que foi escrita por
Thomas Kyd, foi na verdade a estréia de Shakespeare no teatro. A
partir de tal presunção, que
Bloom investiga como um detetive e sustenta como um advogado,
ele propõe que "Hamlet" é o resultado da revisão contínua do
texto, por cerca de 15 anos.
A hipótese é herética o bastante
junto aos "scholars" shakespearianos, mas Bloom vai além e
abraça no ensaio a visão nietzschiana de Hamlet -de que ele
demora a agir porque "enxerga a
verdadeira essência das coisas", a
"verdade terrível, que interfere
com a motivação de agir". Bloom
analisa Falstaff sob a mesma luz,
de forma brilhante, insinuando
que Falstaff é Hamlet, amanhã. O
redemoinho em torno do niilismo de Hamlet prossegue com outra citação de Nietzsche, que terminou sendo a epígrafe do livro,
numa auto-ironia falstaffiana de
Harold Bloom: "O que expressamos com palavras já está morto
em nossos corações".
Avaliação:
Livro: Shakespeare: A Invenção do
Humano
Autor: Harold Bloom
Tradutor: José Roberto O'Shea
Editora: Objetiva (tel. 0/xx/21/556-7824)
Quanto: R$ 64,90 (896 págs.)
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