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FESTIVAL DE CANNES
"Spider", de Cronenberg, e "Russian Ark", de Sokurov, são os dois melhores filmes desta edição
Mostra francesa encerra semana com vigor
ALCINO LEITE NETO
ENVIADO ESPECIAL A CANNES
O Festival de Cannes recebeu
uma propulsão vigorosa ontem
com a exibição dos filmes "Spider" (Aranha), de David Cronenberg, e "Russian Ark" (Arca Russa), de Alexander Sokurov.
O filme do canadense é um dos
mais bem acabados que ele já realizou. O longa do russo é uma
obra-prima. São os dois melhores
já mostrados no festival francês,
que começou no último dia 14 e
divulga as premiações no domingo, dia 26.
David Cronenberg abandonou
toda a sua coleção de monstruosidades, mutações físicas e o seu
neo-expressionismo futurista, para fazer um filme de época, ambientado na Londres contemporânea e dos anos 50 e onde tudo é
narrado de maneira severamente
realista.
Um realismo muito próximo do
cinema inglês do pós-guerra e que
reconstitui também boa parte do
vocabulário visual relacionado à
vida londrina nos bairros de classe baixa, o burburinho dos pubs, a
decoração suburbana e até o gosto grand guignolesco pelos crimes
familiares e os enterramentos secretos nos jardins.
O realismo de "Spider" é, porém, uma armadilha, pois não se
consegue distinguir direito o plano imaginário do que seria um nível objetivo. A Londres do filme é
uma extensão da mente do esquizofrênico.
Cronenberg filma a cidade como uma geografia psíquica. A
ambiência antiquada também entra em correspondência com a
própria abordagem do filme e os
seus simbolismos, no que eles têm
do velho freudismo e da mais anacrônica psiquiatria.
Não é possível contar a história
do filme sem trapacear bastante
com o leitor. Trapaceando, portanto, "Spider" é a história de um
garoto estranho cuja mãe angelical e bondosa é morta pelo pai e
substituída por uma prostituta.
O ator Ralph Fiennes, vestido
com quatro camisas, passa a
maior parte do tempo murmurando em "Spider". Está sensacional no papel-título. Ele faz um esquizofrênico, que, semicurado,
vai viver numa casa de reintegração aberta, na capital inglesa.
A mudança permite que ele
transite pela cidade e recupere, reveja e repita a história de seu trauma -os primeiros momentos do
desenrolar da loucura até o momento crítico, que o levou ao encarceramento psiquiátrico.
Digital
"Russian Ark" é um dos quatro
filmes digitais que estão sendo
exibidos em Cannes neste ano. É o
único neste sistema a participar
da competição oficial.
O filme instala Alexander Sokurov definitivamente entre os
grandes criadores do cinema -e
um dos mais importantes críticos
de seu tempo.
O viés aristocrático tanto de sua
obra quanto de sua compreensão
do mundo constitui um desafio
para o espectador de hoje.
"Russian Ark" tem um único
plano-sequência (plano em que se
movimenta a câmera, sem desligá-la), que dura uma hora e 36
minutos.
A fotografia é de Tilman Buettner (o mesmo de "Corra Lola,
Corra"). A direção é exuberante,
teatral e sinfônica, com centenas
de figurantes.
O filme se passa inteiramente
no Hermitage, em São Petersburgo, construído por Pedro, o Grande, no século 18, transformado em
museu por Catarina 2ª e hoje uma
das grandes coleções de arte da
Europa.
Os dois imperadores comparecem no filme, cuja câmera percorre os interiores do museu como se
andasse por diferentes momentos
da história da Rússia. A câmera
(isto é, o diretor, o espectador, o
olhar) é um fantasma, que segue
ao lado de outro personagem do
além-mundo, um embaixador
francês do século 19.
O percurso é o tempo todo uma
interrogação sobre a Rússia formulada pelo estrangeiro e também uma indagação sobre a Europa, feita a partir do passado russo. "Adeus, Europa, acabou", diz
o fantasma no final do filme, mais
um assombroso trabalho de luto
feito por Sokurov.
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