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"HOMENS DE PRETO"
Símbolo de elegância, cor negra "reina" no imaginário masculino
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Hamlet , Lutero, Velázquez,
Baudelaire, Carlitos, Himmler, Michael Jackson: todos "Homens de Preto", e há muitos mais
neste livro de John Harvey, que
traça a história da preferência
masculina pela indumentária negra. Dos monges beneditinos ao
discreto cortesão renascentista,
da rigidez de Calvino à estética
punk, há muito a ser investigado,
e o autor, numa linha interdisciplinar, analisa quadros de Rembrandt e Degas, romances de Dickens e George Eliot, catálogos de
moda e tragédias de Shakespeare
com muita acuidade e senso de
nuança.
Harvey identifica um progressivo "enegrecimento" da roupa
masculina no Ocidente, em especial a partir do século 15. Foi em
1419 que Felipe, o Bom, duque da
Borgonha, decidiu vestir luto permanente em homenagem a seu
pai, João sem Medo, assassinado
pelos franceses. A cor preta seria
sinal de que não esqueceria a
afronta e que almejava vingança.
Um quadro da época mostra o esbelto e sombrio soberano, de túnica e chapéu ao estilo do Infante
dom Henrique: "O próprio retrato do poder e da virtude no século
15, uma silhueta de pé, autoritária
e negra", diz Harvey.
A vida do ducado independente
da Borgonha seria curta, mas seu
espírito de rigor e formalismo ganharia novo ímpeto na corte dos
mais ilustres descendentes de Felipe, o Bom: Carlos 5º e seu filho
Felipe 2º, reis da Espanha e senhores do mundo recém-descoberto.
É o fastígio do império espanhol,
da Inquisição e da contra-Reforma. O que não significa que nos
países protestantes o negro não
dominasse com ainda maior intensidade.
Depois de um interregno claro e
colorido (no século 18), o negro
volta com mais força. Harvey cita
a célebre frase de Baudelaire sobre
a moda da casaca preta, em meados do século 19:
"Não é este o inevitável uniforme de nossa época sofredora, carregando nos ombros, negros e estreitos, o símbolo de um luto perpétuo? Estamos todos celebrando
algum funeral". Frase que ecoaria,
aliás, num verso de Carlos Drummond: "E todo mundo anda
-como eu- de luto".
De quem é o funeral? A pergunta, formulada logo no primeiro
capítulo, não é de molde a conhecer resposta definitiva. Uma das
dificuldades do livro, que o autor
contorna com grande habilidade,
é que um fenômeno como o uso
pertinaz da roupa negra é ao mesmo idiossincrático, intrigante demais para não ter explicação, e
disseminado, generalizado demais para ter uma só.
Harvey oscila, e na medida do
possível faz a conciliação, entre
acompanhar o desenvolvimento
histórico do fenômeno e especular "historicamente" sobre o seu
significado, sobre a simbologia da
cor negra na cultura ocidental.
O autor se vê obrigado a adequar ao rigor do "politicamente
correto" as associações clássicas
entre o negro, a noite, a morte, o
mal e o demônio. Observa, entretanto, que é isso o que também
torna "sexy" as vestimentas dessa
cor. Por outro lado, o negro simboliza a renúncia, a humildade, a
discrição. Será, portanto, a cor da
extrema pobreza e também a da
extrema elegância; também a cor
do poder e da obediência, do profissional e do dândi.
Devido à natureza "paradoxal"
do preto -cor que nega a cor, capaz de tornar visível o invisível,
significando a auto-negação, mas
também a afirmação dessa auto-negação- surgirá assim um outro paradoxo, o de uma moda que
se torna permanente; moda que
nunca passa de moda.
Inevitável que o livro desse pesquisador de Cambridge, buscando ser panorâmico, termine aos
poucos restringindo o foco a alguns momentos privilegiados: o
estudo dos personagens de Dickens é feito em profundidade, enquanto o século 20 inteiro se comprime em poucas páginas. A indumentária de Oswald Mosley,
um líder fascista inglês, ocupa
ainda assim mais espaço do que a
de Marlon Brando e Drácula. A
escolha de tema tão amplo, inexplorado e fascinante já é, por si só,
um convite à lacuna, ao incompleto e à omissão; o que afinal importa pouco, diante dos resultados, sem dúvida brilhantes, que
Harvey atingiu.
Homens de Preto
Autor: John Harvey
Editora: Unesp
Quanto: R$ 48 (340 págs.)
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