São Paulo, sábado, 22 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"HOMENS DE PRETO"

Símbolo de elegância, cor negra "reina" no imaginário masculino

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Hamlet , Lutero, Velázquez, Baudelaire, Carlitos, Himmler, Michael Jackson: todos "Homens de Preto", e há muitos mais neste livro de John Harvey, que traça a história da preferência masculina pela indumentária negra. Dos monges beneditinos ao discreto cortesão renascentista, da rigidez de Calvino à estética punk, há muito a ser investigado, e o autor, numa linha interdisciplinar, analisa quadros de Rembrandt e Degas, romances de Dickens e George Eliot, catálogos de moda e tragédias de Shakespeare com muita acuidade e senso de nuança.
Harvey identifica um progressivo "enegrecimento" da roupa masculina no Ocidente, em especial a partir do século 15. Foi em 1419 que Felipe, o Bom, duque da Borgonha, decidiu vestir luto permanente em homenagem a seu pai, João sem Medo, assassinado pelos franceses. A cor preta seria sinal de que não esqueceria a afronta e que almejava vingança. Um quadro da época mostra o esbelto e sombrio soberano, de túnica e chapéu ao estilo do Infante dom Henrique: "O próprio retrato do poder e da virtude no século 15, uma silhueta de pé, autoritária e negra", diz Harvey.
A vida do ducado independente da Borgonha seria curta, mas seu espírito de rigor e formalismo ganharia novo ímpeto na corte dos mais ilustres descendentes de Felipe, o Bom: Carlos 5º e seu filho Felipe 2º, reis da Espanha e senhores do mundo recém-descoberto. É o fastígio do império espanhol, da Inquisição e da contra-Reforma. O que não significa que nos países protestantes o negro não dominasse com ainda maior intensidade.
Depois de um interregno claro e colorido (no século 18), o negro volta com mais força. Harvey cita a célebre frase de Baudelaire sobre a moda da casaca preta, em meados do século 19:
"Não é este o inevitável uniforme de nossa época sofredora, carregando nos ombros, negros e estreitos, o símbolo de um luto perpétuo? Estamos todos celebrando algum funeral". Frase que ecoaria, aliás, num verso de Carlos Drummond: "E todo mundo anda -como eu- de luto".
De quem é o funeral? A pergunta, formulada logo no primeiro capítulo, não é de molde a conhecer resposta definitiva. Uma das dificuldades do livro, que o autor contorna com grande habilidade, é que um fenômeno como o uso pertinaz da roupa negra é ao mesmo idiossincrático, intrigante demais para não ter explicação, e disseminado, generalizado demais para ter uma só.
Harvey oscila, e na medida do possível faz a conciliação, entre acompanhar o desenvolvimento histórico do fenômeno e especular "historicamente" sobre o seu significado, sobre a simbologia da cor negra na cultura ocidental.
O autor se vê obrigado a adequar ao rigor do "politicamente correto" as associações clássicas entre o negro, a noite, a morte, o mal e o demônio. Observa, entretanto, que é isso o que também torna "sexy" as vestimentas dessa cor. Por outro lado, o negro simboliza a renúncia, a humildade, a discrição. Será, portanto, a cor da extrema pobreza e também a da extrema elegância; também a cor do poder e da obediência, do profissional e do dândi.
Devido à natureza "paradoxal" do preto -cor que nega a cor, capaz de tornar visível o invisível, significando a auto-negação, mas também a afirmação dessa auto-negação- surgirá assim um outro paradoxo, o de uma moda que se torna permanente; moda que nunca passa de moda.
Inevitável que o livro desse pesquisador de Cambridge, buscando ser panorâmico, termine aos poucos restringindo o foco a alguns momentos privilegiados: o estudo dos personagens de Dickens é feito em profundidade, enquanto o século 20 inteiro se comprime em poucas páginas. A indumentária de Oswald Mosley, um líder fascista inglês, ocupa ainda assim mais espaço do que a de Marlon Brando e Drácula. A escolha de tema tão amplo, inexplorado e fascinante já é, por si só, um convite à lacuna, ao incompleto e à omissão; o que afinal importa pouco, diante dos resultados, sem dúvida brilhantes, que Harvey atingiu.


Homens de Preto
    
Autor: John Harvey
Editora: Unesp
Quanto: R$ 48 (340 págs.)



Texto Anterior: Ilustrada: "Diários de Motocicleta" ganha prêmio em Cannes
Próximo Texto: Livro/lançamento: Beckett narra gênese de seu herói sem pátria
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.