São Paulo, sábado, 22 de maio de 2004

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LIVRO/LANÇAMENTO

Primeiro Amor" combina memória e desejo em edição com desenhos e tradução de Célia Euvaldo

Beckett narra gênese de seu herói sem pátria

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se o delito maior do homem é o de haver nascido, como queria Calderón de la Barca e secundava Samuel Beckett, tomando os versos do espanhol como uma das epígrafes ao seu ensaio sobre Proust, a novela "Primeiro Amor" (escrita em 1946, mas publicada só em 1970, na França) está no coração de uma experiência literária duplamente culpada: a do nascimento de uma das obras mais singulares da prosa narrativa do século 20 e a do renascimento do irlandês como escritor em uma nova língua, o francês.
Entre 45 e 50, em Paris, Beckett concluiu uma trilogia de romances ("Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável") e quatro novelas breves, atravessadas por um mesmo modelo de narrador-protagonista: errante, solitário, materialmente sem teto, espiritualmente sem pátria. No ponto miúdo de "Primeiro Amor", pode-se flagrar sua gênese, instantâneos de sua queda original. A um só tempo produto final e resíduo da razão iluminista e cartesiana, a voz excêntrica que ali, a cada etapa, se esboça e corrige tornou-se a qualidade inconfundível do herói beckettiano, movido a fracassos.
Como o título sugere, memória e desejo combinam-se na história do encontro entre o narrador e a prostituta Lulu, depois rebatizada Anne. Mas o amor aqui nada tem de primaveril. Seus meandros e contornos, longe de idílicos, são fisicamente grotescos, emocionalmente perturbadores, nada petrarquianos. Imbuído de firme disposição analítica, voluntária ou involuntariamente irônica, o narrador examina todos os momentos (a aproximação, a reunião, a separação) de sua malsucedida batalha contra o tumulto passageiro e indesejável que Lulu provoca numa rotina descolorida e sem laços. Vagando pelas ruas durante os dias, passando as noites, junto a um canal, num banco de praça abrigado do vento, está mais à vontade do que na casa atulhada de móveis da namorada.
Nada mais significativo da inversão do modelo de paixão receitado pela "secretária dos amantes" que a abertura do conto ("Associo, com ou sem razão, meu casamento à morte do meu pai, em outros tempos."), em que, postos na balança amor e morte, a simpatia e o instinto aproximam o narrador da última. Assim, o tom nostálgico da recapitulação fica restrito aos passeios pela tranqüilidade estéril dos cemitérios, o cheiro dos mortos preferido ao fedor dos vivos, "cadáveres ainda não completamente no ponto".
Nada dele se comunica às lembranças dos primeiros contatos com Lulu, disputando o banco de praça habitual em meio a frases desencontradas, silêncios descompassados e os arroubos do corpo falando mais alto. Da mesma forma, o desfecho contraria as expectativas do leitor incauto: um filho, vida a caminho, marca a renovação não da esperança, mas da nossa cota de sofrimento. O primeiro amor passa, mas não as cicatrizes.
A convicção do protagonista de que a intimidade psicológica não é possível, muito menos desejável, briga com a teimosia do corpo e sua urgência de proximidade física. O efeito -dessublimante, melancólico e cômico à revelia- afasta qualquer lirismo, dando às descrições das escaramuças entre Lulu e o narrador um sabor escatológico, comum a todas as relações humanas no conto.
Duas palavras sobre a primorosa edição brasileira. Além do cuidado na tradução do texto beckettiano, a artista plástica Célia Euvaldo acerta em cheio na recriação visual de "Primeiro Amor". Comprimido nas páginas pares, o texto se alterna com desenhos, manchas ritmadas, em tons de negro, cinza e branco, que, na sua fluidez, expressam, à perfeição, o imperfeito e o inacabado essenciais ao universo beckettiano.


Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett: O Silêncio Possível" e "O Engenheiro Noturno: A Lírica Final de Jorge de Lima"

Primeiro Amor
    
Autor: Samuel Beckett
Tradução e desenhos: Célia Euvaldo
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 22 (32 págs.)


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