|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVRO/LANÇAMENTO
Primeiro Amor" combina memória e desejo em edição com desenhos e tradução de Célia Euvaldo
Beckett narra gênese de seu herói sem pátria
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Se o delito maior do homem é
o de haver nascido, como
queria Calderón de la Barca e secundava Samuel Beckett, tomando os versos do espanhol como
uma das epígrafes ao seu ensaio
sobre Proust, a novela "Primeiro
Amor" (escrita em 1946, mas publicada só em 1970, na França) está no coração de uma experiência
literária duplamente culpada: a
do nascimento de uma das obras
mais singulares da prosa narrativa do século 20 e a do renascimento do irlandês como escritor em
uma nova língua, o francês.
Entre 45 e 50, em Paris, Beckett
concluiu uma trilogia de romances ("Molloy", "Malone Morre" e
"O Inominável") e quatro novelas
breves, atravessadas por um mesmo modelo de narrador-protagonista: errante, solitário, materialmente sem teto, espiritualmente
sem pátria. No ponto miúdo de
"Primeiro Amor", pode-se flagrar
sua gênese, instantâneos de sua
queda original. A um só tempo
produto final e resíduo da razão
iluminista e cartesiana, a voz excêntrica que ali, a cada etapa, se
esboça e corrige tornou-se a qualidade inconfundível do herói
beckettiano, movido a fracassos.
Como o título sugere, memória
e desejo combinam-se na história
do encontro entre o narrador e a
prostituta Lulu, depois rebatizada
Anne. Mas o amor aqui nada tem
de primaveril. Seus meandros e
contornos, longe de idílicos, são
fisicamente grotescos, emocionalmente perturbadores, nada
petrarquianos. Imbuído de firme
disposição analítica, voluntária
ou involuntariamente irônica, o
narrador examina todos os momentos (a aproximação, a reunião, a separação) de sua malsucedida batalha contra o tumulto
passageiro e indesejável que Lulu
provoca numa rotina descolorida
e sem laços. Vagando pelas ruas
durante os dias, passando as noites, junto a um canal, num banco
de praça abrigado do vento, está
mais à vontade do que na casa
atulhada de móveis da namorada.
Nada mais significativo da inversão do modelo de paixão receitado pela "secretária dos amantes" que a abertura do conto ("Associo, com ou sem razão, meu casamento à morte do meu pai, em
outros tempos."), em que, postos
na balança amor e morte, a simpatia e o instinto aproximam o
narrador da última. Assim, o tom
nostálgico da recapitulação fica
restrito aos passeios pela tranqüilidade estéril dos cemitérios, o
cheiro dos mortos preferido ao fedor dos vivos, "cadáveres ainda
não completamente no ponto".
Nada dele se comunica às lembranças dos primeiros contatos
com Lulu, disputando o banco de
praça habitual em meio a frases
desencontradas, silêncios descompassados e os arroubos do
corpo falando mais alto. Da mesma forma, o desfecho contraria as
expectativas do leitor incauto: um
filho, vida a caminho, marca a renovação não da esperança, mas
da nossa cota de sofrimento. O
primeiro amor passa, mas não as
cicatrizes.
A convicção do protagonista de
que a intimidade psicológica não
é possível, muito menos desejável,
briga com a teimosia do corpo e
sua urgência de proximidade física. O efeito -dessublimante, melancólico e cômico à revelia-
afasta qualquer lirismo, dando às
descrições das escaramuças entre
Lulu e o narrador um sabor escatológico, comum a todas as relações humanas no conto.
Duas palavras sobre a primorosa edição brasileira. Além do cuidado na tradução do texto beckettiano, a artista plástica Célia Euvaldo acerta em cheio na recriação visual de "Primeiro Amor".
Comprimido nas páginas pares, o
texto se alterna com desenhos,
manchas ritmadas, em tons de
negro, cinza e branco, que, na sua
fluidez, expressam, à perfeição, o
imperfeito e o inacabado essenciais ao universo beckettiano.
Fábio de Souza Andrade é professor
de teoria literária na USP, autor de "Samuel Beckett: O Silêncio Possível" e "O
Engenheiro Noturno: A Lírica Final de
Jorge de Lima"
Primeiro Amor
Autor: Samuel Beckett
Tradução e desenhos: Célia Euvaldo
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 22 (32 págs.)
Texto Anterior: "Homens de Preto": Símbolo de elegância, cor negra "reina" no imaginário masculino Próximo Texto: Música: Show de grupo brasileiro vai à Justiça italiana Índice
|