São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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CULTURA PIRATA

Advogados alertam para práticas corriqueiras que transformam cidadãos comums em foras-da-lei
O dia em que o Fulano virou criminoso

DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL

NINA LEMOS
COLUNISTA DA FOLHA

Fulano decide baixar músicas da internet. Vai até aquele shopping popular que vende tudo mais barato (porque os produtos são contrabandeados ou piratas) e compra CDs virgens para gravar uns discos em casa. Depois disso, decide dar uma cópia de presente de aniversário para Sicrano. Que tal fazer uma capa? Simples. Fulano retira uma imagem da internet, imprime e pronto. Sicrano, que é DJ, gosta tanto do disco que resolve tocá-lo em sua festa. Fulano e Sicrano são criminosos, segundo a lei brasileira.
Comprar o CD virgem contrabandeado é crime. Gravar um disco só é permitido ser for para consumo próprio. Dá-lo de presente é uma infração civil. Copiar uma imagem da internet sem autorização também é proibido. E a legislação que protege os direitos de autor não permite, claro, que o disco que Fulano "criou" seja executado em casas noturnas.

Furto
"Alguém que entra na garagem de sua casa e pega um toca-fitas do seu carro está cometendo, no mínimo, crime de furto. Ele está tirando um bem que pertence a outra pessoa. Quem grava [músicas ou filmes] da internet está fazendo algo semelhante, só que com um bem imaterial", afirma Carlos Alberto de Camargo, diretor da Associação de Defesa da Propriedade Intelectual (Adepi), entidade responsável por fiscalizar violações de direitos autorais do setor audiovisual na internet brasileira. "Embora não seja tipificado [como crime] na lei, quem faz um download para uso próprio está se apropriando de um bem que não é dele. Não é punível, mas é eticamente reprovável, como os outros [furtos]."
"Eticamente reprovável" aqui, mas crime pela lei americana. Em 27 de abril, o Congresso dos EUA fez alterações em sua legislação que criminalizam a simples posse de arquivos (músicas, filmes, softwares) pirateados.
Impulsionada pelos lobbies das grandes gravadoras (RIAA) e dos estúdios de cinema (MPAA), a decisão acompanha uma tendência daquele país de atuar com extremo rigor diante dos adeptos de download ilegal -e não só diante daqueles que os comercializam, como acontece no Brasil.
Ainda no mês passado, Universal, Sony BMG, EMI e Warner juntaram forças e lançaram nova onda de processos, desta vez contra usuários asiáticos e europeus que, ao menos na teoria, fugiriam de sua jurisdição legal.
Ao mesmo tempo em que as ações da indústria da música eram emitidas, a Suprema Corte americana iniciou o julgamento de um dos casos mais decisivos para o futuro da troca de arquivos pela internet. Trata-se de um processo que a Metro-Goldwyn-Mayer move contra os criadores dos programas Grokster e Morpheus, que, semelhantes aos também populares Kazaa e Soulseek, favoreceriam a pirataria, segundo o argumento do estúdio de cinema.
O embate promete ser longo e vem sendo comparado ao de 1984, quando Hollywood tentou tirar, na Justiça, o direito de a Sony produzir videocassetes que poderiam ser usados para gravar filmes exibidos na TV -a Sony ganhou o caso.

Uso comercial
"Existe uma grande confusão em comparar as leis americanas com as brasileiras. A nossa é muito mais efetiva para a proteção contra atos de pirataria. Os americanos têm de fazer leis muito detalhadas para falar do óbvio", avalia Marcos Bitelli, advogado das principais distribuidoras de cinema no Brasil. "Aqui, as distribuidoras vão mais atrás de quem vai fazer uso comercial disso."
Pois é justamente no comércio ilegal que se concentram os esforços brasileiros atuais para combater a pirataria -sob pressão diplomática e comercial constante dos EUA, que colocou o Brasil numa lista dos países que mais consomem produtos falsificados.
De janeiro a maio deste ano foram apreendidos, segundo a Adepi, cerca de 527 mil DVDs, 110 mil VCDs e 76 mil VHSs com material pirata. Boa parte deles era anunciada em sites da internet e vendida pelo correio -410 páginas desse tipo já foram tiradas do ar desde o início deste ano.
"A despeito da ilusão de estar no anonimato, na net, a pessoa deixa muito mais rastros do que no mundo real", alerta Camargo, diretor da Adepi e também membro do Conselho Nacional de Combate à Pirataria, cujas ações vêm sendo coordenadas pelas polícias Federal e Rodoviária e a Receita. "Temos um setor de inteligência que faz investigações na internet e que as transformam em evidências e provas aceitas no Judiciário", revela Camargo.
No último dia 13, por exemplo, quatro rapazes foram presos em flagrante em um apartamento na periferia de Belo Horizonte de onde comandavam um site de venda de filmes piratas. Em 2004, foram 18 flagrantes. Neste ano, seis.

Receptação
Mas e quem compra, afinal, também comete crime?
"Esse é um crime bastante comum e que ninguém percebe: é receptação. Segundo o Código Penal brasileiro, adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar algo que você sabe que é produto de uma atividade ilegal é crime com multa e reclusão de um a quatro anos", alerta o advogado Guilherme de Almeida, do Kaminski, Cerdeira e Pesserl Advogados. "Se um CD custa R$ 30 na loja e você compra por R$ 3, a lei diz que você deve "presumir" que aquilo é produto de um crime. É tão na cara que você não pode dizer que não sabia." A pena: de um mês a um ano de prisão e multa.

Cópias de segurança
OK. Mas, se compro um produto original, ninguém vai me impedir de fazer quantas cópias eu quiser, ou vai? Aí é que entra o DRM (Digital Rights Management), sigla usada para designar os cadeados digitais que determinam, por exemplo, se e quantas cópias você pode fazer, onde pode exibi-las, quem pode acessá-las...
Recentemente, a lei francesa -que é bem semelhante à brasileira na proteção aos direitos de autor- se deparou com um caso curioso. Um cidadão comprou o filme "A Estrada Perdida", de David Lynch, e tentou copiá-lo em VHS para passar na casa de sua mãe. Não conseguiu, entrou com uma ação, que acabou vencendo e abrindo um precedente importante: o direito dos produtores em proteger o seu conteúdo contra cópias ilegais não deve ser superior ao direito de o consumidor fazer uma cópia de segurança para uso privado.
"Quando o consumidor compra um CD ou DVD, ele adquire uma licença de uso daquela obra. O fato de tentar mudar o meio ou o suporte onde se encontra aquela obra, para fins pessoais, não viola nenhum direito do autor. O consumidor é detentor de uma licença de uso, e não de um pedaço de plástico", concorda Caio Mariano, outro sócio da Kaminski, Cerdeira e Pesserl Advogados, especializado em direito digital.
Mas a lei brasileira é mais escorregadia nesse sentido. Ainda que, numa atualização de 2003 no Código Penal, tenha sido liberado que o consumidor faça "uma cópia privada em um único suporte", a lei de Direito de Autor permite apenas cópias de pequenos trechos, e não cópias integrais.
Parece que o slogan corporativista "consulte sempre um advogado" nunca foi tão necessário...


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