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CULTURA PIRATA
Advogados alertam para práticas corriqueiras que transformam cidadãos comums em foras-da-lei
O dia em que o Fulano virou criminoso
DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL
NINA LEMOS
COLUNISTA DA FOLHA
Fulano decide baixar músicas
da internet. Vai até aquele shopping popular que vende tudo
mais barato (porque os produtos
são contrabandeados ou piratas)
e compra CDs virgens para gravar
uns discos em casa. Depois disso,
decide dar uma cópia de presente
de aniversário para Sicrano. Que
tal fazer uma capa? Simples. Fulano retira uma imagem da internet, imprime e pronto. Sicrano,
que é DJ, gosta tanto do disco que
resolve tocá-lo em sua festa. Fulano e Sicrano são criminosos, segundo a lei brasileira.
Comprar o CD virgem contrabandeado é crime. Gravar um disco só é permitido ser for para consumo próprio. Dá-lo de presente é
uma infração civil. Copiar uma
imagem da internet sem autorização também é proibido. E a legislação que protege os direitos de
autor não permite, claro, que o
disco que Fulano "criou" seja executado em casas noturnas.
Furto
"Alguém que entra na garagem
de sua casa e pega um toca-fitas
do seu carro está cometendo, no
mínimo, crime de furto. Ele está
tirando um bem que pertence a
outra pessoa. Quem grava [músicas ou filmes] da internet está fazendo algo semelhante, só que
com um bem imaterial", afirma
Carlos Alberto de Camargo, diretor da Associação de Defesa da
Propriedade Intelectual (Adepi),
entidade responsável por fiscalizar violações de direitos autorais
do setor audiovisual na internet
brasileira. "Embora não seja tipificado [como crime] na lei, quem
faz um download para uso próprio está se apropriando de um
bem que não é dele. Não é punível, mas é eticamente reprovável,
como os outros [furtos]."
"Eticamente reprovável" aqui,
mas crime pela lei americana. Em
27 de abril, o Congresso dos EUA
fez alterações em sua legislação
que criminalizam a simples posse
de arquivos (músicas, filmes, softwares) pirateados.
Impulsionada pelos lobbies das
grandes gravadoras (RIAA) e dos
estúdios de cinema (MPAA), a
decisão acompanha uma tendência daquele país de atuar com extremo rigor diante dos adeptos de
download ilegal -e não só diante
daqueles que os comercializam,
como acontece no Brasil.
Ainda no mês passado, Universal, Sony BMG, EMI e Warner
juntaram forças e lançaram nova
onda de processos, desta vez contra usuários asiáticos e europeus
que, ao menos na teoria, fugiriam
de sua jurisdição legal.
Ao mesmo tempo em que as
ações da indústria da música
eram emitidas, a Suprema Corte
americana iniciou o julgamento
de um dos casos mais decisivos
para o futuro da troca de arquivos
pela internet. Trata-se de um processo que a Metro-Goldwyn-Mayer move contra os criadores dos
programas Grokster e Morpheus,
que, semelhantes aos também populares Kazaa e Soulseek, favoreceriam a pirataria, segundo o argumento do estúdio de cinema.
O embate promete ser longo e
vem sendo comparado ao de
1984, quando Hollywood tentou
tirar, na Justiça, o direito de a
Sony produzir videocassetes que
poderiam ser usados para gravar
filmes exibidos na TV -a Sony
ganhou o caso.
Uso comercial
"Existe uma grande confusão
em comparar as leis americanas
com as brasileiras. A nossa é muito mais efetiva para a proteção
contra atos de pirataria. Os americanos têm de fazer leis muito detalhadas para falar do óbvio", avalia Marcos Bitelli, advogado das
principais distribuidoras de cinema no Brasil. "Aqui, as distribuidoras vão mais atrás de quem vai
fazer uso comercial disso."
Pois é justamente no comércio
ilegal que se concentram os esforços brasileiros atuais para combater a pirataria -sob pressão diplomática e comercial constante
dos EUA, que colocou o Brasil numa lista dos países que mais consomem produtos falsificados.
De janeiro a maio deste ano foram apreendidos, segundo a Adepi, cerca de 527 mil DVDs, 110 mil
VCDs e 76 mil VHSs com material pirata. Boa parte deles era
anunciada em sites da internet e
vendida pelo correio -410 páginas desse tipo já foram tiradas do
ar desde o início deste ano.
"A despeito da ilusão de estar no
anonimato, na net, a pessoa deixa
muito mais rastros do que no
mundo real", alerta Camargo, diretor da Adepi e também membro do Conselho Nacional de
Combate à Pirataria, cujas ações
vêm sendo coordenadas pelas polícias Federal e Rodoviária e a Receita. "Temos um setor de inteligência que faz investigações na internet e que as transformam em
evidências e provas aceitas no Judiciário", revela Camargo.
No último dia 13, por exemplo,
quatro rapazes foram presos em
flagrante em um apartamento na
periferia de Belo Horizonte de onde comandavam um site de venda
de filmes piratas. Em 2004, foram
18 flagrantes. Neste ano, seis.
Receptação
Mas e quem compra, afinal,
também comete crime?
"Esse é um crime bastante comum e que ninguém percebe: é
receptação. Segundo o Código
Penal brasileiro, adquirir, receber,
transportar, conduzir ou ocultar
algo que você sabe que é produto
de uma atividade ilegal é crime
com multa e reclusão de um a
quatro anos", alerta o advogado
Guilherme de Almeida, do Kaminski, Cerdeira e Pesserl Advogados. "Se um CD custa R$ 30 na
loja e você compra por R$ 3, a lei
diz que você deve "presumir" que
aquilo é produto de um crime. É
tão na cara que você não pode dizer que não sabia." A pena: de um
mês a um ano de prisão e multa.
Cópias de segurança
OK. Mas, se compro um produto original, ninguém vai me impedir de fazer quantas cópias eu quiser, ou vai? Aí é que entra o DRM
(Digital Rights Management), sigla usada para designar os cadeados digitais que determinam, por
exemplo, se e quantas cópias você
pode fazer, onde pode exibi-las,
quem pode acessá-las...
Recentemente, a lei francesa
-que é bem semelhante à brasileira na proteção aos direitos de
autor- se deparou com um caso
curioso. Um cidadão comprou o
filme "A Estrada Perdida", de David Lynch, e tentou copiá-lo em
VHS para passar na casa de sua
mãe. Não conseguiu, entrou com
uma ação, que acabou vencendo e
abrindo um precedente importante: o direito dos produtores em
proteger o seu conteúdo contra
cópias ilegais não deve ser superior ao direito de o consumidor
fazer uma cópia de segurança para uso privado.
"Quando o consumidor compra um CD ou DVD, ele adquire
uma licença de uso daquela obra.
O fato de tentar mudar o meio ou
o suporte onde se encontra aquela
obra, para fins pessoais, não viola
nenhum direito do autor. O consumidor é detentor de uma licença de uso, e não de um pedaço de
plástico", concorda Caio Mariano, outro sócio da Kaminski, Cerdeira e Pesserl Advogados, especializado em direito digital.
Mas a lei brasileira é mais escorregadia nesse sentido. Ainda que,
numa atualização de 2003 no Código Penal, tenha sido liberado
que o consumidor faça "uma cópia privada em um único suporte", a lei de Direito de Autor permite apenas cópias de pequenos
trechos, e não cópias integrais.
Parece que o slogan corporativista "consulte sempre um advogado" nunca foi tão necessário...
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