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FERREIRA GULLAR
Cidade inventada
Niã é uma bela cidade que
vive, hoje, sob regime democrático. No passado remoto,
quando os senhores de terra e de
escravos mandavam em tudo, um
punhado de homens destemidos
decidiu lutar para instituir na cidade o respeito às leis, perante as
quais todos seriam iguais. A luta
foi dura e sangrenta, resultando
em perseguições e mortes. Quase
todos os integrantes desse grupo
rebelde foram executados; apenas
um deles sobreviveu e conseguiu
deixar a cidade dentro de um saco de aniagem. Os chefes militares
aproveitaram-se da rebelião para
dar o golpe e tomar o poder.
Assim, durante duas décadas,
reinou em Niã a paz dos cemitérios. Os donos de terra tiveram de
ceder parte de suas propriedades
aos novos senhores, enquanto os
descontentes -que decerto os havia- nada diziam, pois qualquer
crítica ao regime provocava brutais represálias... Por isso, segundo se conta, alguns mais revoltados, na ânsia de manifestar seu
descontentamento, cavavam buracos no quintal de sua casa, metiam a cabeça neles até o pescoço
e berravam insultos e impropérios
contra a ditadura militar. Há
quem afirme que esses gritos de
raiva entranhando-se no solo fizeram nascer estranhos arbustos,
de folhas afiadas feito navalhas, e
que dessas navalhas se valeu a
população para -numa noite de
tórrido e sufocante verão, quando
o céu ardia feito um tacho incandescente emborcado sobre Niã-
invadir os quartéis e cortar os colhões de todos os generais e, em
seguida, decapitá-los com a ajuda
da tropa sublevada. Parece que,
no entanto, a verdade histórica é
outra: a rebelião teria surgido aos
poucos, quando as pessoas começaram a cochichar em cozinhas e
mictórios públicos, dando início à
secreta mobilização que, de repente, como uma onda gigante
(um tsunami), invadiu os quartéis e as mansões dos poderosos,
afogando a todos.
O líder rebelde, que se havia exilado e que voltara clandestinamente, foi quem encabeçou a "rebelião do cochicho", pois com este
nome passou ela à história. Derrotada a ditadura, o líder propôs
que se instituíssem na cidade eleições livres para todos os cargos de
governo, dos deputados ao governador. Criaram-se os partidos, e
as eleições culminaram com a vitória do líder revolucionário. Ele,
então, deu início a grandes mudanças -com a desapropriação
de parte das terras para a reforma
agrária e com mais recursos para
a indústria- que fizeram crescer
a classe operária e, com isso, surgirem sindicatos mais fortes.
Emergem, então, líderes operários, que passam a atuar na vida
política de Niã. Aprovou-se uma
legislação que consagrava os direitos básicos dos trabalhadores.
A cidade viveu, então, o melhor
momento de sua história, com a
multiplicação de escolas, bibliotecas públicas, hospitais, serviço de
saneamento e proteção ambiental.
Os anos se passaram, Niã continuou a crescer -e cada vez mais
rapidamente, com a migração de
pessoas que até então viviam no
campo ou nas cidades vizinhas.
Esse aumento inesperado da população alterou a estrutura urbana de Niã, uma vez que, como cogumelos, se multiplicavam os casebres de zinco e papelão que foram brotando em torno da cidade
até aprisioná-la num cinturão de
miséria e violência. Logo apareceram políticos que se voltaram para essas áreas pobres e nela desenvolveram uma pregação oportunista que lhes valeu muitos votos.
Prometiam àquela gente necessitada casas, alimentos e transporte
quase de graça. Um deles conseguiu eleger-se governador, mas
não teve futuro, já que o que prometera era impossível de cumprir.
Pouco depois, um líder operário,
que se destacara por seu carisma,
conseguiu chegar ao poder para a
euforia da maior parte da população, convencida de que, enfim,
estando à frente do governo um
homem nascido do povo, seus
problemas seriam resolvidos. "Ele
disse que, em seu governo, ninguém passaria fome nem moraria
ao relento", repetiam os seus seguidores mais ardorosos. Mas a
euforia do dia da posse não durou
muito: o governador revelou-se
um boquirroto, que mais discursava que trabalhava. Acostumado a criticar o governo, não se deu
conta de que era, então, governo
e, para o espanto de todos, clamava pela solução dos problemas como se não fosse ele o responsável
por enfrentá-los. Em face disso, o
otimismo popular transformou-se, primeiro, em desencanto e, depois, em irritação e revolta, enquanto o governo, para contentar
seus aliados, aumentava os gastos
oficiais e escorchava o povo com
novos impostos. A revolta agravou-se com a notícia de que a corrupção grassava no governo e na
Câmara de Deputados. O povo
enfureceu-se ainda mais porque
os deputados aprovaram novos
gastos em benefício próprio. As
tentativas de deter o descalabro
de nada valeram, uma vez que os
corruptos contavam com a complacência de seus colegas, e o Judiciário, fazendo vista grossa, não
punia ninguém. Só a imprensa se
negava a aceitar semelhante situação, mas as denúncias caíam
no vazio. Parecia impossível escapar de semelhante impasse. Não
obstante, nestas últimas semanas,
correm boatos de que, de novo,
nas cozinhas, nos mictórios públicos e nos mercados de peixe, o povo voltou a cochichar, deixando
de orelha em pé os donos do poder, ainda que até agora ninguém
tenha pronunciado a palavra tsunami.
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