São Paulo, segunda-feira, 22 de maio de 2006

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NELSON ASCHER

A luta de classes em Sampa


Armas são máquinas e, para os facínoras, além de propriedade privada, são bens de capital

O CRIME, como se sabe, resulta da desigualdade. Uma vez que há muitas espécies de desigualdade, talvez valha a pena investigar quais seriam as mais "criminogênicas".
Pois, se é verdade que alguns possuem mais disso ou daquilo e alguns, menos, salta aos olhos que uma das grandes desigualdades sociais é a da posse de armas. Os delinqüentes têm mais do que os cidadãos comuns e, provavelmente, mais (e melhores) do que a polícia. Armas são máquinas e, para os facínoras, além de simples propriedade privada, são bens de capital.
O virtual controle criminoso dos meios de produção de cadáveres é a desigualdade que se encontra na base de seu negócio. Elite ascendente que são, os celerados se beneficiam, como outrora a aristocracia, de dois códigos legais diferentes.
Existe um que, incluindo de fato a pena capital, propicia-lhes ampla liberdade de ação. (A despeito das ilusões de ótica, a pena de morte é aplicada liberalmente no Brasil: quem desafie ou cruze o caminho do PCC saberá disso, se bem que por pouco tempo.).
O outro código foi como que talhado sob medida para, com a desculpa esfarrapada de circunscrever uma "civilização" que apenas seus advogados auto-selecionados sabem o que é, impedir a sociedade de se proteger.
Como foi que, demograficamente minoritários, os facínoras impuseram condições que os favorecem? Tal qual as demais vanguardas revolucionárias através da história, eles contam com uma organização superior e uma ideologia que serve a seus interesses. O crime organizado nada mais faz que seguir os passos dos antigos opressores: nobres feudais, mercadores, barões de indústria, burocratas estatais.
A história da humanidade é, decerto, a da luta de classes e, no mundo inteiro, sob nomes distintos, ocultando-se com sua retórica atrás de causas (esquerdistas, direitistas, confessionais, n.d.a.) enganosamente justas, os criminosos estão agora se convertendo numa nova classe dominante.
Nossos observadores esclarecidos andaram ditando aos concidadãos o que fazer ou deixar de fazer. Segundo eles, nunca se deve ceder ao medo, por mais adequado que este seja.
Tolamente, ao não lhes dar ouvidos, a população recorreu à greve geral. Ocorre que a greve só é "legítima" se desencadeada por minorias com o intuito de chantagear a maioria. Caso se interrompa o trânsito da cidade e se promova um quebra-quebra, tanto melhor. Extrair privilégios setoriais é bom; zelar pela própria vida, ruim. E os cidadãos que protestam ou param, exigindo condições decentes de segurança, agem, como afirmaram os analistas, reacionária ou covardemente. Requer-se deles que sejam heróicos, apesar de o Galileu brechtiano ter lamentado a sorte de uma nação que precise de heróis.
O presidente, por seu turno, propôs, à guisa de solução, a construção de escolas em vez de presídios. Boa idéia. Afinal, o próprio PCC vem investindo em educação e, com mais escolas, teremos no futuro delinqüentes mais informados, preparados e eficazes. O que é um batedor de carteira analfabeto perto de um assaltante pós-graduado? Já os colegas de nosso amado líder (Chávez, Morales, Fidel) gostarão de saber que, depois de depostos, o que os aguarda é não a prisão, mas a sala de aula. Não fosse Lula quem é, conviria, no entanto, pressupor que nem ele ignora dispormos de um sistema educacional capaz de emburrecer até os celerados.
A proposta mais brilhante partiu, contudo, de onde se esperava e foi a seguinte: dado que, detendo o monopólio da violência real, os criminosos desejam se apropriar dos bens do resto da população, por que não converter seus objetivos em programa de governo? Apoiado na desculpa falida do igualitarismo, o Estado poderia, portanto, roubar o que os cidadãos possuem.
Brecht, que um dia indagou "o que é assaltar um banco comparado a abrir um banco?", hoje perguntaria: "O que é abrir um banco comparado a formular uma ideologia, fundar um partido e tomar o poder?" Quanto a nós, pobres mortais covardes, resta-nos somente torcer para que o sucesso do PCC estimule a concorrência de modo a que, no futuro, possamos ao menos optar entre o PCC, o PCCB, o PCC do B e assim por diante.


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