São Paulo, sexta, 22 de maio de 1998

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O túmulo do torcedor desconhecido

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial


Éramos 200 mil pessoas espremidas no estádio recém-inaugurado. Adentrei as arquibancadas antes das 10h da manhã. Fui vestido com fé e alegria -era o uniforme de todos- e, às cinco de la tarde, como no poema de Garcia Lorca, percebi que uma coisa terrível desabara sobre o mundo.
Continuei imóvel, sentado no degrau de cimento ainda fresco, olhava o sol que batia obliquamente no gramado, ouvia o silêncio da multidão, um silêncio não quebrado nem mesmo pelo pranto de homens que soluçavam alto, em arrancos brutais, na orfandade coletiva. Sobreviventes daquela tarde cruel acreditaram que nunca mais poderiam ser felizes.
Semanas antes, havíamos iniciado a trajetória triunfal das goleadas. No jogo de abertura, ganhamos fácil do México, lembro do primeiro gol marcado por Ademir nos minutos iniciais, quando ainda se ouviam os disparos dos canhões que saudavam a abertura da 4ª Jules Rimet. "O urro da multidão foi maior do que o troar dos canhões" -cito um cronista da época. Depois do México, tivemos um tropeço em São Paulo, empate de 2 a 2 com a Suíça. A imprensa carioca declarou que São Paulo não era Brasil.
Em seguida, goleamos a Espanha por 6 a 1, ao som das "Touradas em Madri". Os espanhóis ficaram apavorados não com a goleada, mas com aquele hino de guerra, o cântico da gozação nacional: paratimbum bumbum. Mário Filho entrevistou um cartola da Espanha: o sujeito jurou que a marchinha causara pânico nos jogadores da "Furia".
Veio depois a Suécia com o seu goleiro de luvas e aquele bonezinho contra o sol. Foi vaiado por antecipação, por causa do boné e das luvas, mais do que pelos sete gols que levou no bucho de viking derrotado.
Não tínhamos espaço para nos preocupar com o Uruguai, que modestamente ia chegando à final. E, quando soubemos que o rival seria um vizinho, ficamos com raiva do destino e da tabela.
Exigíamos sangue, estávamos embriagados de glória, não merecíamos a desfeita de levantar a Copa do Mundo em cima de gente de casa. Havíamos sonhado com uma final tipo exportação, com o "english team", ou com a Itália, encalhada em nossa garganta desde 1938, bicampeã do mundo porque Domingos da Guia fizera um pênalti desnecessário numa jogada sem bola.
Mais por dever profissional do que por necessidade de informação, os jornais lembravam que os uruguaios vestiam a celeste olímpica, já haviam sido campeões mundiais, e o time não era ruim de todo. No porre da alegria não consultamos nossos bruxos, esquecemos nossas mandingas particulares, deixamos de invocar nossos numes tutelares.
E lá fomos para o Maracanã. Às 10h o estádio já botava pelo ladrão, levávamos a merenda ingênua para o grande recreio. Mais importante do que os sanduíches ou a galinha com farofa eram os fogos, as flâmulas enormes e coloridas -justa medieval em ritmo de samba-, a bateria de tambores e surdos que participariam do nosso cívico funeral.
Quando acabou o primeiro tempo, ouvi um sujeito explicar que assim era até melhor. Nada de "ejaculation precox", pra que gozar logo? Devíamos fazer render o nosso orgasmo.
E veio o segundo tempo. Friaça meteu o primeiro gol. Máspoli foi apanhar a bola na rede. Não parecia um goleiro derrotado. Era meio gordo, mas pegava bem. Na verdade -eu procurava ser imparcial- os uruguaios estavam jogando razoavelmente.
Não vi o tapa de Obdulio Varela em Bigode, mas vi quando Julio Perez deu um passe para a ponta-direita. Ghiggia correu para a área. Juvenal foi cobrir o lance (Bigode ficara batido), e Barbosa, no gol, fechava o ângulo.
Ghiggia ameaçou chutar, mas centrou para o miolo da área. Schiafino entrou e enfiou o pé: Uruguai 1 a 1.
Bem, não havia de ser nada. O empate nos dava a Copa de qualquer forma. E ainda faltavam mais de 20 minutos.
Pouco depois, a mesma jogada teve replay: novamente Julio Perez escapou pelo centro, lançou Schiafino, este abriu para Ghiggia, que correu na lateral da área. Tudo igual ao lance anterior. Juvenal saiu em cima dele (novamente Bigode ficara batido na linha média). Barbosa deslocou-se um pouco, fechando o ângulo. Mas, desta vez, tanto Juvenal como Barbosa estavam de olho em Miguez, que entrava pelo centro, esperando o passe que viria da direita.
Foi nesse momento que Eduardo Alcides Ghiggia percebeu que havia a pequena brecha entre o goleiro do Brasil e a trave do Brasil. Entre a glória e a derrota.
E Ghiggia botou a bola naquele canto, naquela trave que, até hoje, por masoquismo, os locutores ainda chamam de "gol de Ghiggia", referência do nosso orgulho ferido, de nossa dor enxovalhada.
Em vão, o Brasil foi para a frente. Ademir acertou uma na trave. Zizinho, perdido no meio-campo, driblava o nada. Poucos ouviram o apito do juiz. Nos olhos embaciados não ainda pelas lágrimas, mas pelo pasmo, vimos uns 30 gatos pingados darem a volta olímpica pelo estádio, Obdulio Varela esmurrava o peito e gritava: "Es la Celeste!".
Quem passou pelo 16 de julho de 1950 merece um monumento coletivo, como o do túmulo do Soldado Desconhecido. São essas coisas que formam uma pátria, que formam um povo encharcado em sua dor.



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