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O túmulo do torcedor desconhecido
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Éramos 200 mil pessoas espremidas no estádio recém-inaugurado. Adentrei as arquibancadas antes das 10h da
manhã. Fui vestido com fé e
alegria -era o uniforme de
todos- e, às cinco de la tarde,
como no poema de Garcia Lorca, percebi que uma coisa terrível desabara sobre o mundo.
Continuei imóvel, sentado
no degrau de cimento ainda
fresco, olhava o sol que batia
obliquamente no gramado,
ouvia o silêncio da multidão,
um silêncio não quebrado nem
mesmo pelo pranto de homens
que soluçavam alto, em arrancos brutais, na orfandade coletiva. Sobreviventes daquela
tarde cruel acreditaram que
nunca mais poderiam ser felizes.
Semanas antes, havíamos
iniciado a trajetória triunfal
das goleadas. No jogo de abertura, ganhamos fácil do México, lembro do primeiro gol
marcado por Ademir nos minutos iniciais, quando ainda
se ouviam os disparos dos canhões que saudavam a abertura da 4ª Jules Rimet. "O urro
da multidão foi maior do que
o troar dos canhões" -cito
um cronista da época. Depois
do México, tivemos um tropeço
em São Paulo, empate de 2 a 2
com a Suíça. A imprensa carioca declarou que São Paulo
não era Brasil.
Em seguida, goleamos a Espanha por 6 a 1, ao som das
"Touradas em Madri". Os espanhóis ficaram apavorados
não com a goleada, mas com
aquele hino de guerra, o cântico da gozação nacional: paratimbum bumbum. Mário Filho
entrevistou um cartola da Espanha: o sujeito jurou que a
marchinha causara pânico nos
jogadores da "Furia".
Veio depois a Suécia com o
seu goleiro de luvas e aquele
bonezinho contra o sol. Foi
vaiado por antecipação, por
causa do boné e das luvas,
mais do que pelos sete gols que
levou no bucho de viking derrotado.
Não tínhamos espaço para
nos preocupar com o Uruguai,
que modestamente ia chegando à final. E, quando soubemos que o rival seria um vizinho, ficamos com raiva do destino e da tabela.
Exigíamos sangue, estávamos embriagados de glória,
não merecíamos a desfeita de
levantar a Copa do Mundo em
cima de gente de casa. Havíamos sonhado com uma final tipo exportação, com o "english
team", ou com a Itália, encalhada em nossa garganta desde 1938, bicampeã do mundo
porque Domingos da Guia fizera um pênalti desnecessário
numa jogada sem bola.
Mais por dever profissional
do que por necessidade de informação, os jornais lembravam que os uruguaios vestiam
a celeste olímpica, já haviam
sido campeões mundiais, e o time não era ruim de todo. No
porre da alegria não consultamos nossos bruxos, esquecemos
nossas mandingas particulares, deixamos de invocar nossos numes tutelares.
E lá fomos para o Maracanã.
Às 10h o estádio já botava pelo
ladrão, levávamos a merenda
ingênua para o grande recreio.
Mais importante do que os
sanduíches ou a galinha com
farofa eram os fogos, as flâmulas enormes e coloridas -justa
medieval em ritmo de samba-, a bateria de tambores e
surdos que participariam do
nosso cívico funeral.
Quando acabou o primeiro
tempo, ouvi um sujeito explicar que assim era até melhor.
Nada de "ejaculation precox",
pra que gozar logo? Devíamos
fazer render o nosso orgasmo.
E veio o segundo tempo.
Friaça meteu o primeiro gol.
Máspoli foi apanhar a bola na
rede. Não parecia um goleiro
derrotado. Era meio gordo,
mas pegava bem. Na verdade
-eu procurava ser imparcial- os uruguaios estavam
jogando razoavelmente.
Não vi o tapa de Obdulio Varela em Bigode, mas vi quando
Julio Perez deu um passe para
a ponta-direita. Ghiggia correu para a área. Juvenal foi cobrir o lance (Bigode ficara batido), e Barbosa, no gol, fechava o ângulo.
Ghiggia ameaçou chutar,
mas centrou para o miolo da
área. Schiafino entrou e enfiou
o pé: Uruguai 1 a 1.
Bem, não havia de ser nada.
O empate nos dava a Copa de
qualquer forma. E ainda faltavam mais de 20 minutos.
Pouco depois, a mesma jogada teve replay: novamente Julio Perez escapou pelo centro,
lançou Schiafino, este abriu
para Ghiggia, que correu na
lateral da área. Tudo igual ao
lance anterior. Juvenal saiu em
cima dele (novamente Bigode
ficara batido na linha média).
Barbosa deslocou-se um pouco, fechando o ângulo. Mas,
desta vez, tanto Juvenal como
Barbosa estavam de olho em
Miguez, que entrava pelo centro, esperando o passe que viria da direita.
Foi nesse momento que
Eduardo Alcides Ghiggia percebeu que havia a pequena
brecha entre o goleiro do Brasil
e a trave do Brasil. Entre a glória e a derrota.
E Ghiggia botou a bola naquele canto, naquela trave
que, até hoje, por masoquismo,
os locutores ainda chamam de
"gol de Ghiggia", referência do
nosso orgulho ferido, de nossa
dor enxovalhada.
Em vão, o Brasil foi para a
frente. Ademir acertou uma na
trave. Zizinho, perdido no
meio-campo, driblava o nada.
Poucos ouviram o apito do
juiz. Nos olhos embaciados
não ainda pelas lágrimas, mas
pelo pasmo, vimos uns 30 gatos
pingados darem a volta olímpica pelo estádio, Obdulio Varela esmurrava o peito e gritava: "Es la Celeste!".
Quem passou pelo 16 de julho
de 1950 merece um monumento coletivo, como o do túmulo
do Soldado Desconhecido. São
essas coisas que formam uma
pátria, que formam um povo
encharcado em sua dor.
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