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Lya Luft quer escrever com "vigor de mulher"
CYNARA MENEZES
enviada especial a Porto Alegre
A primeira
surpresa de
quem só conhecia Lya Luft, 60,
por fotografias e
imaginava toda
escritora como
miúda e frágil é
o seu tamanho: do alto de seu 1,76
m, ela é enorme.
A segunda surpresa é que, apesar
de gaúcha e, como sua aparência
física denuncia, descendente de
alemães, ela revela um insuspeitado lado "baiano".
É ela mesma quem diz: "Sou superbrasileira, como qualquer negra que vende acarajé nas ruas de
Salvador. A única diferença é que
os antepassados dela vieram de navio como escravos, e os meus, como colonizadores".
Fã do candomblé, única religião
que a atrai, traz no braço, sob o relógio, uma "mandinga" protetora.
Com seu jeito grandão e despachado, parece mesmo uma "ialorixá"
(mãe-de-santo) germânica. Com
direito a elogios à preguiça e tudo o
mais. Uma indolência curtida não
na rede, mas no sofá da grande casa que tem em Porto Alegre e que
não a impediu, como a Dorival
Caymmi, de produzir muito: traduziu mais de cem obras e lança
agora seu 11º livro, "O Ponto Cego", uma história que mistura
amor e dor, como a sua própria.
Lya Luft foi casada dos 25 aos 47
anos com o gramático Celso Pedro
Luft, de quem herdou o sobrenome -seu nome de solteira é Fett.
Separou-se dele para viver uma
paixão com o psicanalista Hélio
Pellegrino, que terminou em menos de três anos, com a morte dele.
Quatro anos mais tarde, em 92,
voltou a se casar -com o primeiro
marido, de quem também enviuvaria três anos depois, em 95.
Em entrevista à Folha, Lya Luft
falou de seu novo romance, de homens e mulheres, de literatura e
tradução, de amor e do mistério
que move sua escritura. Leia a seguir os principais trechos.
Folha - A sra. se sente dividida
entre ser alemã e brasileira?
Lya Luft - Já sou de várias gerações no Brasil, me considero superbrasileira, apesar da cara, como
qualquer negra que vende acarajé
nas ruas de Salvador. A única diferença é que os antepassados dela
vieram de navio como escravos, e
os meus, como colonizadores. Mas
meus antepassados eram artesãos,
não eram gente da terra. Meu pai,
que era de Porto Alegre, foi nomeado juiz e vim para cá aos 18
anos fazer faculdade de letras, lecionei na universidade, mas não
gosto da vida acadêmica. Acho tudo aquilo de reunião de departamento uma chatice.
Folha - Foi aí que a sra. conheceu
Celso Pedro Luft?
Luft - Não, conheci como aluna
da faculdade, ele já era professor.
Era quase 20 anos mais velho do
que eu e irmão marista. Tirou a batina para casar comigo.
Folha - A sra. sempre morou em
Porto Alegre?
Luft - Fora os três anos que passei
no Rio com o Hélio, sempre. Me
demiti da universidade e fiquei só
traduzindo e escrevendo. Meu primeiro romance saiu em 80, e acho
que aí que começou minha carreira literária. A minha verdadeira
profissão eu considero a tradução.
Faço para ganhar dinheiro e por
acaso também gosto. Escrever,
não, é uma paixão. De vez em
quando me dá uma crise de paixonite e eu escrevo.
Folha - Sua obra é autobiográfica?
Luft - Eu tenho um livro autobiográfico, "O Lado Fatal", que escrevi depois da morte do Hélio. O resto é 99,9% invenção. Claro que tem
dados do real. Por exemplo, o livro
que escrevi morando no Rio, que
saiu em 87, "O Exílio" -nome dado pelo Hélio-, transcorre em
uma casa vermelha que existe em
Santa Teresa, mas na qual eu nunca entrei. A fantasia pega dados do
concreto e bota aquilo ali.
Folha - Há histórias que lhe contam também?
Luft - Às vezes, coisas que escuto,
que vejo, mas é tudo muito elaborado pela fantasia. Eu faço ficção,
mexo com o imaginário, com o
misterioso. Acredito muito no ser
humano mergulhado no mistério.
Não pratico nenhuma religião,
mas acredito no lado avesso das
coisas e que a gente não compreende. Isso me fascina. Se eu praticasse uma religião hoje, seria o candomblé, porque gosto dessa coisa
ligada à natureza.
Folha - A sra. acredita que é possível, se a pessoa deseja, não crescer, como acontece com o personagem de seu novo livro?
Luft - Não sei, mas, para ser sincera, a realidade me interessa muito pouco. Só é importante na hora
de pagar contas, preencher cheques. Quando vou exercer minha
arte, a realidade é um acidente.
Folha - Por que no novo romance
a sra. usa como epígrafes trechos
de seus próprios livros?
Luft - Isso é uma das maravilhas
de ter feito 60 anos. A maturidade
traz suas dores, mas, por outro lado, tem esses ganhos maravilhosos, que é uma serenidade maior,
um pouquinho mais de liberdade,
ousadia. Achei que o personagem
central do livro, que é o menino, tinha muito a ver com o Anão, que
foi um personagem que inventei
em "O Exílio" e que eu amei. E lá
pelas tantas o menino se pergunta:
"Eu sou o Anão?". Então, comecei
a botar alusões a personagens de
outros livros e as epígrafes também. Não são meus os personagens? Eu os convoquei e me diverti
muito.
Folha - Apesar de ser um livro
bastante triste, não?
Luft - Minhas histórias nem são
tão tristes, mas inquietantes, têm
bastante tragédia. Minha arte nasce do conflito. Eu brinco dizendo
que tenho um olho alegre que vive
e outro triste que escreve.
Folha - E aquela mulher traída,
submissa ao marido cruel, do livro,
a sra. vê em muitas pessoas?
Luft - Acho que na verdade eu tenho uma visão de um modo geral
muito positiva do masculino. O
que falo no livro é dessa servidão
da mulher, dessa dança. Você vai
numa festa, os homens estão todos
sentados e dizem às mulheres, às
vezes grandes profissionais: fulana, traz o pão, traz o azeite, o vinho. Nunca aceitei servir aos homens. Não falo em gentileza, sempre fui gentil, mas eles também
eram comigo.
Folha - Seu livro me pareceu muito feminino, rótulo que incomoda
muitas escritoras. A sra. não?
Luft - Como sou mulher, tudo
que faço é de mulher. Acho que
existe uma cosmovisão feminina, a
mulher tem uma experiência biopsíquica do mundo que o homem
não tem. Quando a gente não gosta
de falar em literatura feminina é
naquele sentido, literatura feita
por mulheres, aquela coisa mais
amena. Às vezes, para me elogiar,
diziam: "Ah, é muito bom, escreve
com mão de homem".
Eu fico p... da vida. Não quero escrever como homem, quero escrever com todo o vigor de uma mulher. Não sou, nem fisicamente,
uma criaturinha pobrezinha, que
os homens precisam proteger. Até
porque acho que as mulheres frageizinhas, protegidinhas, no fundo
estão explorando seus maridos.
Não tem nada a ver isso de que os
homens escrevem com vigor e as
mulheres com doçura, p... que pariu, não é assim. Meu poeta favorito, (Rainer Maria) Rilke, tem delicadezas infinitas. E não vale perguntar se era homossexual ou não
porque é preconceito.
Folha - Ele foi inclusive apaixonado pela Lou Andreas-Salomé...
Luft - Foi, e não interessa se trepou ou não trepou, isso é preconceito. E eu amo a liberdade.
Folha - Mas existem muitas mulheres escritoras que criticam nas
outras essa escrita feminina...
Luft - Mulher não presta, né?
Folha - Homem não lê mulher...
Luft - Lê muito, tenho muitíssimos leitores homens. Qual o homem que não vai ler a poesia de
Adélia Prado? Só se for muito burro. Agora, tem muito mais homem
escrevendo do que mulher.
Folha - A sra. traduziu muitos livros. É possível traduzir sem trair?
Luft - Acho que não existe isso.
Quando vou traduzir, meu primeiro desejo é aproximar meu colega
estrangeiro do leitor brasileiro.
Então não posso ser inteiramente
fiel porque senão ninguém vai poder ler. A minha fidelidade é não
fazer carnaval em cima do texto.
Não posso inventar, não posso botar nem tirar frases.
Folha - Quando a sra. fala que sua
carreira só começou em 80, é porque foi preciso esperar que os filhos estivessem criados?
Luft - Não, foi uma questão de
maturidade e coragem intelectual.
Embora não pareça, intelectualmente sempre fui tímida, e isso me
fazia ficar escrevendo poesia, crônicas, que eram muito ruins. Então, quando fui escrever o primeiro romance, usei de toda a minha
coragem para dizer: vou escrever o
que quero, do jeito que quero, estou me lixando para editor, para
crítico, para leitor. Isso me fez um
grande bem. E o livro deu muito
certo. Eu era uma romancista.
Folha - A sra. trabalha muito?
Luft - Sim, mas acho que o homem não nasceu pro trabalho.
Acho que o homem nasceu para o
ócio, no sentido nobre: para contemplar as belas coisas da natureza, para exercer o amor, ter prazeres, criar. Nesse sentido sou uma
odalisca. Tenho uma preguiça física enorme. Quer me ver feliz é me
ver sentada no sofá, com as pernas
para cima, lendo ou vendo televisão, imaginando, aparentemente
sem fazer nada. É o que chamo
uma falsa vagabundagem lírica.
Folha - Como a sra. pode conciliar
a literatura com a preguiça?
Luft - Tenho um superego germânico do qual procuro fugir há
60 anos e que ainda funciona, que
faz com que pague minhas contas,
que ligue o computador e produza.
Mas acho que, na contracorrente
do nosso tempo apressado, a gente
podia se dar uma hora, um dia sem
fazer nada. Lembro-me de que o
Hélio dizia muito para mim: você é
uma das poucas pessoas que conheço que nunca vai precisar cheirar pó para entrar no barato. Você
vive no seu barato.
Folha - A sra., que foi casada com
dois homens interessantes, como
acha que deve ser o homem ideal?
Luft - Inteligente, óbvio. E irônico, arguto, terno, divertido. E que
me trate como uma rainha. Senão
eu não quero. Porque eu também
vou tratá-lo como um rei.
Folha - E ainda está à busca?
Luft - Não, eu não busco nada,
nunca busquei. Eles é que apareceram na minha vida. De momento
estou quieta, já casei demais, fiquei
viúva demais, não me imagino
mais vivendo com ninguém. Mas
algum encantamento de vez em
quando é uma coisa legal.
Livro: O Ponto Cego
Autora: Lya Luft
Lançamento: Mandarim/Siciliano
Quanto: R$ 16 (153 págs.)
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