São Paulo, Sábado, 22 de Maio de 1999
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Lya Luft quer escrever com "vigor de mulher"

CYNARA MENEZES
enviada especial a Porto Alegre


A primeira surpresa de quem só conhecia Lya Luft, 60, por fotografias e imaginava toda escritora como miúda e frágil é o seu tamanho: do alto de seu 1,76 m, ela é enorme.
A segunda surpresa é que, apesar de gaúcha e, como sua aparência física denuncia, descendente de alemães, ela revela um insuspeitado lado "baiano".
É ela mesma quem diz: "Sou superbrasileira, como qualquer negra que vende acarajé nas ruas de Salvador. A única diferença é que os antepassados dela vieram de navio como escravos, e os meus, como colonizadores".
Fã do candomblé, única religião que a atrai, traz no braço, sob o relógio, uma "mandinga" protetora. Com seu jeito grandão e despachado, parece mesmo uma "ialorixá" (mãe-de-santo) germânica. Com direito a elogios à preguiça e tudo o mais. Uma indolência curtida não na rede, mas no sofá da grande casa que tem em Porto Alegre e que não a impediu, como a Dorival Caymmi, de produzir muito: traduziu mais de cem obras e lança agora seu 11º livro, "O Ponto Cego", uma história que mistura amor e dor, como a sua própria.
Lya Luft foi casada dos 25 aos 47 anos com o gramático Celso Pedro Luft, de quem herdou o sobrenome -seu nome de solteira é Fett. Separou-se dele para viver uma paixão com o psicanalista Hélio Pellegrino, que terminou em menos de três anos, com a morte dele.
Quatro anos mais tarde, em 92, voltou a se casar -com o primeiro marido, de quem também enviuvaria três anos depois, em 95.
Em entrevista à Folha, Lya Luft falou de seu novo romance, de homens e mulheres, de literatura e tradução, de amor e do mistério que move sua escritura. Leia a seguir os principais trechos.
Folha - A sra. se sente dividida entre ser alemã e brasileira?
Lya Luft -
Já sou de várias gerações no Brasil, me considero superbrasileira, apesar da cara, como qualquer negra que vende acarajé nas ruas de Salvador. A única diferença é que os antepassados dela vieram de navio como escravos, e os meus, como colonizadores. Mas meus antepassados eram artesãos, não eram gente da terra. Meu pai, que era de Porto Alegre, foi nomeado juiz e vim para cá aos 18 anos fazer faculdade de letras, lecionei na universidade, mas não gosto da vida acadêmica. Acho tudo aquilo de reunião de departamento uma chatice.
Folha - Foi aí que a sra. conheceu Celso Pedro Luft?
Luft -
Não, conheci como aluna da faculdade, ele já era professor. Era quase 20 anos mais velho do que eu e irmão marista. Tirou a batina para casar comigo.
Folha - A sra. sempre morou em Porto Alegre?
Luft -
Fora os três anos que passei no Rio com o Hélio, sempre. Me demiti da universidade e fiquei só traduzindo e escrevendo. Meu primeiro romance saiu em 80, e acho que aí que começou minha carreira literária. A minha verdadeira profissão eu considero a tradução. Faço para ganhar dinheiro e por acaso também gosto. Escrever, não, é uma paixão. De vez em quando me dá uma crise de paixonite e eu escrevo.
Folha - Sua obra é autobiográfica?
Luft -
Eu tenho um livro autobiográfico, "O Lado Fatal", que escrevi depois da morte do Hélio. O resto é 99,9% invenção. Claro que tem dados do real. Por exemplo, o livro que escrevi morando no Rio, que saiu em 87, "O Exílio" -nome dado pelo Hélio-, transcorre em uma casa vermelha que existe em Santa Teresa, mas na qual eu nunca entrei. A fantasia pega dados do concreto e bota aquilo ali.
Folha - Há histórias que lhe contam também?
Luft -
Às vezes, coisas que escuto, que vejo, mas é tudo muito elaborado pela fantasia. Eu faço ficção, mexo com o imaginário, com o misterioso. Acredito muito no ser humano mergulhado no mistério. Não pratico nenhuma religião, mas acredito no lado avesso das coisas e que a gente não compreende. Isso me fascina. Se eu praticasse uma religião hoje, seria o candomblé, porque gosto dessa coisa ligada à natureza.
Folha - A sra. acredita que é possível, se a pessoa deseja, não crescer, como acontece com o personagem de seu novo livro?
Luft -
Não sei, mas, para ser sincera, a realidade me interessa muito pouco. Só é importante na hora de pagar contas, preencher cheques. Quando vou exercer minha arte, a realidade é um acidente.
Folha - Por que no novo romance a sra. usa como epígrafes trechos de seus próprios livros?
Luft -
Isso é uma das maravilhas de ter feito 60 anos. A maturidade traz suas dores, mas, por outro lado, tem esses ganhos maravilhosos, que é uma serenidade maior, um pouquinho mais de liberdade, ousadia. Achei que o personagem central do livro, que é o menino, tinha muito a ver com o Anão, que foi um personagem que inventei em "O Exílio" e que eu amei. E lá pelas tantas o menino se pergunta: "Eu sou o Anão?". Então, comecei a botar alusões a personagens de outros livros e as epígrafes também. Não são meus os personagens? Eu os convoquei e me diverti muito.
Folha - Apesar de ser um livro bastante triste, não?
Luft -
Minhas histórias nem são tão tristes, mas inquietantes, têm bastante tragédia. Minha arte nasce do conflito. Eu brinco dizendo que tenho um olho alegre que vive e outro triste que escreve.
Folha - E aquela mulher traída, submissa ao marido cruel, do livro, a sra. vê em muitas pessoas?
Luft -
Acho que na verdade eu tenho uma visão de um modo geral muito positiva do masculino. O que falo no livro é dessa servidão da mulher, dessa dança. Você vai numa festa, os homens estão todos sentados e dizem às mulheres, às vezes grandes profissionais: fulana, traz o pão, traz o azeite, o vinho. Nunca aceitei servir aos homens. Não falo em gentileza, sempre fui gentil, mas eles também eram comigo.
Folha - Seu livro me pareceu muito feminino, rótulo que incomoda muitas escritoras. A sra. não?
Luft -
Como sou mulher, tudo que faço é de mulher. Acho que existe uma cosmovisão feminina, a mulher tem uma experiência biopsíquica do mundo que o homem não tem. Quando a gente não gosta de falar em literatura feminina é naquele sentido, literatura feita por mulheres, aquela coisa mais amena. Às vezes, para me elogiar, diziam: "Ah, é muito bom, escreve com mão de homem".
Eu fico p... da vida. Não quero escrever como homem, quero escrever com todo o vigor de uma mulher. Não sou, nem fisicamente, uma criaturinha pobrezinha, que os homens precisam proteger. Até porque acho que as mulheres frageizinhas, protegidinhas, no fundo estão explorando seus maridos. Não tem nada a ver isso de que os homens escrevem com vigor e as mulheres com doçura, p... que pariu, não é assim. Meu poeta favorito, (Rainer Maria) Rilke, tem delicadezas infinitas. E não vale perguntar se era homossexual ou não porque é preconceito.
Folha - Ele foi inclusive apaixonado pela Lou Andreas-Salomé...
Luft -
Foi, e não interessa se trepou ou não trepou, isso é preconceito. E eu amo a liberdade.
Folha - Mas existem muitas mulheres escritoras que criticam nas outras essa escrita feminina...
Luft -
Mulher não presta, né?
Folha - Homem não lê mulher...
Luft -
Lê muito, tenho muitíssimos leitores homens. Qual o homem que não vai ler a poesia de Adélia Prado? Só se for muito burro. Agora, tem muito mais homem escrevendo do que mulher.
Folha - A sra. traduziu muitos livros. É possível traduzir sem trair?
Luft -
Acho que não existe isso. Quando vou traduzir, meu primeiro desejo é aproximar meu colega estrangeiro do leitor brasileiro. Então não posso ser inteiramente fiel porque senão ninguém vai poder ler. A minha fidelidade é não fazer carnaval em cima do texto. Não posso inventar, não posso botar nem tirar frases.
Folha - Quando a sra. fala que sua carreira só começou em 80, é porque foi preciso esperar que os filhos estivessem criados?
Luft -
Não, foi uma questão de maturidade e coragem intelectual. Embora não pareça, intelectualmente sempre fui tímida, e isso me fazia ficar escrevendo poesia, crônicas, que eram muito ruins. Então, quando fui escrever o primeiro romance, usei de toda a minha coragem para dizer: vou escrever o que quero, do jeito que quero, estou me lixando para editor, para crítico, para leitor. Isso me fez um grande bem. E o livro deu muito certo. Eu era uma romancista.
Folha - A sra. trabalha muito?
Luft -
Sim, mas acho que o homem não nasceu pro trabalho. Acho que o homem nasceu para o ócio, no sentido nobre: para contemplar as belas coisas da natureza, para exercer o amor, ter prazeres, criar. Nesse sentido sou uma odalisca. Tenho uma preguiça física enorme. Quer me ver feliz é me ver sentada no sofá, com as pernas para cima, lendo ou vendo televisão, imaginando, aparentemente sem fazer nada. É o que chamo uma falsa vagabundagem lírica.
Folha - Como a sra. pode conciliar a literatura com a preguiça?
Luft -
Tenho um superego germânico do qual procuro fugir há 60 anos e que ainda funciona, que faz com que pague minhas contas, que ligue o computador e produza. Mas acho que, na contracorrente do nosso tempo apressado, a gente podia se dar uma hora, um dia sem fazer nada. Lembro-me de que o Hélio dizia muito para mim: você é uma das poucas pessoas que conheço que nunca vai precisar cheirar pó para entrar no barato. Você vive no seu barato.
Folha - A sra., que foi casada com dois homens interessantes, como acha que deve ser o homem ideal?
Luft -
Inteligente, óbvio. E irônico, arguto, terno, divertido. E que me trate como uma rainha. Senão eu não quero. Porque eu também vou tratá-lo como um rei.
Folha - E ainda está à busca?
Luft -
Não, eu não busco nada, nunca busquei. Eles é que apareceram na minha vida. De momento estou quieta, já casei demais, fiquei viúva demais, não me imagino mais vivendo com ninguém. Mas algum encantamento de vez em quando é uma coisa legal.

Livro: O Ponto Cego
Autora: Lya Luft
Lançamento: Mandarim/Siciliano
Quanto: R$ 16 (153 págs.)


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