São Paulo, quinta-feira, 22 de junho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA/ESTRÉIAS

"O ESTADO DO CÃO"
Produção toca réquiem por Mongólia descaracterizada

ALVARO MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para onde vai a alma de um cão quando ele desencarna? Os mongóis se valem de seu lastro espiritual budista para afirmar que o animal reencarna em gente.
Mas a qualidade do ser humano anda tão precária que o vira-lata Baaçár, herói do filme "O Estado do Cão", se recusa a cumprir o destino a ele reservado pela mitologia das estepes da Ásia Central.
Essa é a fábula narrada pelo diretor mongol Turmunkh e pelo belga Brosens, no filme ganhador do prêmio da crítica na 22ª Mostra de Cinema de São Paulo (98).
Mais do que uma história singela acerca da antiga importância do cão para povos pastoris, o que o filme pretende mostrar é a descaracterização cultural e a pauperização da Mongólia, ou seja, a sua "modernização" e inserção numa economia globalizada, que começa no final dos anos 80 com a queda dos regimes comunistas do Leste Europeu, dos quais obtinha recursos. Atualmente, o país realiza acordos com o FMI e recebe ajuda econômica emergencial dos EUA e do Japão.
"O Estado do Cão" começa com sons e imagens poderosos: um jovem urbano de veia poética sufi improvisa inspiradamente frente à câmera, sob o alarido de dezenas de cães. Acompanhamos depois o destino desses animais na atual Mongólia, enquanto uma narração fora do quadro inicia a história de Baaçár. Destituídos de seu papel de heróis dos rebanhos "artesanais" de cabras, em franca decadência, os cães vagam sem dono pelas ruas das novas cidades, semelhantes a centros de reciclagem de lixo industrial.
Acusados de transmitir doenças e espalhar sujeira, são abatidos a tiros em meio a favelas fantasmagóricas, dominadas por monstruosos geradores de eletricidade.
As imagens em estilo documentário serão penosas para os espectadores mais apegados aos bichos, mas o que dizer da prisão e da execução de milhares de pastores nômades pelo regime comunista mongol nos anos 40, apenas porque o seu modo de vida não se adequava ao modelo de "desenvolvimento"? Essas mortes sequer possuem testemunho gravado.
A sorte canina serve de metáfora para o destino atual do antes orgulhoso império mongol: o cão sarnento, menos valioso que esqueletos bovinos ou garrafas vazias, está pronto para o sacrifício e nem se dá ao trabalho de resistir.
O filme não vai além desse triste "estado". Desiludidos e descapitalizados, os cineastas não reconstituem as tradições dos principados nômades, como fez a cineasta underground alemã Ulrike Ottinger em "Joana d'Arc da Mongólia" (89), que o Instituto Goethe (SP) mostrou em 99 para a atenção de poucos. Esse filme, com Delphine Seyrig, recuperava os maravilhosos costumes da região.
Para fazer contraponto às imagens monocromáticas da capital Ulan Bator e suas ruas fustigadas pela areia do deserto -sequências difíceis de acompanhar a certa altura-, a câmera de "O Estado do Cão" se vale do que encontra pela frente para ecoar os antigos valores. Cata restos, como algumas figuras que documenta.
Assim, ouvimos os enigmas do trovador em transe, sofisticadas canções tradicionais, composições de Schnitke e Gubaidulina baseadas nos modos locais de escrita musical; e contemplamos um templo de aparência indestrutível, o encontro de uma combalida comunidade para partilhar músicas e lutas e as imagens de uma solitária dançarina contorcionista em meio a uma pradaria.
A arte dessa pequena mulher que parece não ter ossos é emblemática do espírito do filme: com um sorriso nos lábios, ela executa movimentos que sugerem dores terríveis. O seu corpo é como um cartum ou um item que existe apenas no espaço virtual.


O Estado do Cão
Nohoi Oron     Direção: Peter Brosens e Dorjkhandyn Turmunkh Produção: Mongólia/Bélgica, 1998 (91 min.) Com: Nyam Dagyrantz, Baatar Galsansukh Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 1




Texto Anterior: Debate: Bioética é discutida na PUC-SP
Próximo Texto: "Um Estranho Chamado Elvis": O rei voltou, e para te salvar, em pesadelo bom com Keitel
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.