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CINEMA/ESTRÉIAS
"O ESTADO DO CÃO"
Produção toca réquiem por Mongólia descaracterizada
ALVARO MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para onde vai a alma de um
cão quando ele desencarna?
Os mongóis se valem de seu lastro
espiritual budista para afirmar
que o animal reencarna em gente.
Mas a qualidade do ser humano
anda tão precária que o vira-lata
Baaçár, herói do filme "O Estado
do Cão", se recusa a cumprir o
destino a ele reservado pela mitologia das estepes da Ásia Central.
Essa é a fábula narrada pelo diretor mongol Turmunkh e pelo
belga Brosens, no filme ganhador
do prêmio da crítica na 22ª Mostra de Cinema de São Paulo (98).
Mais do que uma história singela acerca da antiga importância
do cão para povos pastoris, o que
o filme pretende mostrar é a descaracterização cultural e a pauperização da Mongólia, ou seja, a
sua "modernização" e inserção
numa economia globalizada, que
começa no final dos anos 80 com
a queda dos regimes comunistas
do Leste Europeu, dos quais obtinha recursos. Atualmente, o país
realiza acordos com o FMI e recebe ajuda econômica emergencial
dos EUA e do Japão.
"O Estado do Cão" começa com
sons e imagens poderosos: um jovem urbano de veia poética sufi
improvisa inspiradamente frente
à câmera, sob o alarido de dezenas de cães. Acompanhamos depois o destino desses animais na
atual Mongólia, enquanto uma
narração fora do quadro inicia a
história de Baaçár. Destituídos de
seu papel de heróis dos rebanhos
"artesanais" de cabras, em franca
decadência, os cães vagam sem
dono pelas ruas das novas cidades, semelhantes a centros de reciclagem de lixo industrial.
Acusados de transmitir doenças
e espalhar sujeira, são abatidos a
tiros em meio a favelas fantasmagóricas, dominadas por monstruosos geradores de eletricidade.
As imagens em estilo documentário serão penosas para os espectadores mais apegados aos bichos, mas o que dizer da prisão e
da execução de milhares de pastores nômades pelo regime comunista mongol nos anos 40, apenas
porque o seu modo de vida não se
adequava ao modelo de "desenvolvimento"? Essas mortes sequer
possuem testemunho gravado.
A sorte canina serve de metáfora para o destino atual do antes
orgulhoso império mongol: o cão
sarnento, menos valioso que esqueletos bovinos ou garrafas vazias, está pronto para o sacrifício e
nem se dá ao trabalho de resistir.
O filme não vai além desse triste
"estado". Desiludidos e descapitalizados, os cineastas não reconstituem as tradições dos principados nômades, como fez a cineasta
underground alemã Ulrike Ottinger em "Joana d'Arc da Mongólia" (89), que o Instituto Goethe
(SP) mostrou em 99 para a atenção de poucos. Esse filme, com
Delphine Seyrig, recuperava os
maravilhosos costumes da região.
Para fazer contraponto às imagens monocromáticas da capital
Ulan Bator e suas ruas fustigadas
pela areia do deserto -sequências difíceis de acompanhar a certa altura-, a câmera de "O Estado do Cão" se vale do que encontra pela frente para ecoar os antigos valores. Cata restos, como algumas figuras que documenta.
Assim, ouvimos os enigmas do
trovador em transe, sofisticadas
canções tradicionais, composições de Schnitke e Gubaidulina
baseadas nos modos locais de escrita musical; e contemplamos
um templo de aparência indestrutível, o encontro de uma combalida comunidade para partilhar
músicas e lutas e as imagens de
uma solitária dançarina contorcionista em meio a uma pradaria.
A arte dessa pequena mulher
que parece não ter ossos é emblemática do espírito do filme: com
um sorriso nos lábios, ela executa
movimentos que sugerem dores
terríveis. O seu corpo é como um
cartum ou um item que existe
apenas no espaço virtual.
O Estado do Cão
Nohoi Oron
Direção: Peter Brosens e Dorjkhandyn
Turmunkh
Produção: Mongólia/Bélgica, 1998 (91
min.)
Com: Nyam Dagyrantz, Baatar
Galsansukh
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco 1
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