São Paulo, sábado, 22 de junho de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

A sombra do sol

Associated Press
Criança passa por tenda dos Médicos sem Fronteiras em Ajiep, no Sudão, cenário do livro "Ébano"



Sai no Brasil "Ébano", obra na qual o polonês Ryszard Kapuscinski, expoente do "jornalismo literário", narra 40 anos de coberturas na África


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Durante 40 anos, o polonês Ryszard Kapuscinski farejou cada fragmento empoeirado do território africano. Funcionário único da Agência de Notícias da Polônia no continente, o jornalista enfiou o nariz em todos os tipos de conflitos internacionais imagináveis e acompanhou, entre tiros, flechas e machadadas, a independência de 25 colônias européias.
Ex-jogador de futebol em Varsóvia, ele driblou linchamentos, cobras e leões, tuberculoses e malárias cerebrais. Também deu um "olé" na efemeridade jornalística. Seus relatos calorosos do front viraram 20 livros e um número gêmeo de prêmios literários.
Aos 70 anos, publicado em 30 idiomas, Richard Kapuchinski (como se pronuncia seu nome) têm seu segundo título lançado em território brasileiro. Está chegando às livrarias na próxima semana "Ébano", o trabalho mais recente desse expoente máximo do "jornalismo literário".
No livro, o autor narra, com cinco sentidos, todos os espanto que existem em um continente como o africano para um réles "mzungu" (homem branco, em suaíli).
Começa relatando a violência da luz solar em Gana, país pelo qual começou sua odisséia, em 1958; termina narrando as sombras da miséria e falta de expectativas da África contemporânea. Em entrevista à Folha, o escritor e jornalista, que virá em outubro ao Brasil, um dos temas de seu próximo livro, ilumina nuances desse continente de sol e sombras.

Folha - O pensador francês Jean Baudrillard disse recentemente à Folha que a globalização ainda não tomou conta de todo o mundo pois a África, "última utopia possível", não está sendo considerada parte do jogo. O que o sr. pensa disso?
Ryszard Kapuscinski -
A globalização não mudou a África até agora. E a tendência é que o continente só perca com esse processo. Parece claro que a globalização aumenta as diferenças entre os centros e as periferias do mundo. A África não só não participa e dificilmente participará da distribuição da riqueza global como é a grande vítima do mito globalizante. Já se estimula muito a difusão da idéia de que os africanos devem esperar, que a globalização vai resolver todas suas mazelas.
O mito da globalização como solução para todos os problemas dramáticos do mundo é uma idéia perigosa, um modo distorcido de apresentar a realidade.

Folha - Como o sr. compararia a realidade da África de hoje em relação à que o sr. viu nos anos 50?
Kapuscinski -
Nos anos 50 e 60 existia um grande otimismo. Se vinculava, naquele tempo, o problema da independência com questões de bem estar social. Existia a idéia de que uma vez que o país ficasse livre o progresso se faria automaticamente.
Foi o contrário. Hoje o continente está em condições muito ruins e não se vislumbra nenhuma solução imediata para tantas desgraças. Os africanos enfrentam atualmente uma nova seca, a água potável é cada vez mais rara e as epidemias se multiplicam. As estruturas estatais são muito fracas para lidar com tanta desgraça.

Folha - Qual o motivo da fragilidade dos Estados africanos?
Kapuscinski -
O maior problema é que os Estados-nação africanos foram modelados segundo estruturas européias coloniais. O nacionalismo patriótico africano anticolonialista em vez de modificar e reformar os Estados coloniais tratou de não deixar que mexessem em suas bases.
Essa é a grande razão por trás do enorme número de conflitos na região nas últimas décadas.

Folha - O sr. arriscou o pescoço muitas vezes para cobrir esses conflitos. Como o sr. lidou com o medo constante da morte?
Kapuscinski -
O problema essencial, muitas vezes, não é o medo de que alguém atire em você. É que em diversas situações simplesmente não há nada para comer. Ao mesmo tempo, existem todos os tipos de doença por perto e nenhum hospital nas cercanias. Os grandes problemas na África são os problemas da vida diária. Para experimentar essas dificuldades e seguir nas trincheiras é necessário ter muita motivação e um pouco de loucura.

Folha - O sr. vê muitas características comuns entre Brasil e África?
Kapuscinski -
Sim, há muito da África por aí. Vou tratar deste tema no meu próximo livro, que será sobre a América Latina. O Brasil é um fenômeno incrível. É o modelo da sociedade planetária do século 21, um país de inúmeras possibilidades de criação, uma nação formada por tantas culturas e raças e com um só idioma.

Folha - Outro idioma que falamos com frequência é o do futebol. Nessa Copa do Mundo os africanos apareceram bem mais uma vez. Qual a leitura que o sr. faz do fortalecimento do futebol africano?
Kapuscinski -
O desenvolvimento do futebol na África é um elemento de descolonização cultural e mental desse continente. É um símbolo de criação de novas independências culturais.


ÉBANO - De: Ryszard Kapuscinski. Tradução: Tomasz Barcinski. Editora: Cia das Letras. Quanto: R$ 37 (360 págs.)



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