São Paulo, sábado, 22 de junho de 2002

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"CONTOS HÚNGAROS"

"Era uma vez" o inconsciente

PAULO SCHILLER
ESPECIAL PARA A FOLHA

No território do "era uma vez", num lugar para além de mares, rios e reinos imaginários, vivem, na fantasia da gente simples do campo, donzelas bondosas, madrastas malvadas, pobres de espírito, gigantes, fadas, bruxas, magos, duendes, dragões, árvores milagrosas, bichos e objetos falantes. Há os palácios de ouro com portões de prata e porões forrados de diamantes. Lindas princesas choram pérolas e riem rosas.
Nas vozes dos narradores dessa coleção, transparece clara a fala do contador que reitera palavra por palavra, ao gosto das crianças, os acontecimentos conhecidos e esperados, ou inventa e modula o roteiro segundo a percepção que tem dos ouvintes. A beleza do texto, preservada pela tradução, não é fruto de uma prosa requintada: deriva da transcrição fiel do estilo narrativo da tradição oral. Embora muitas das fábulas exaltem o triunfo do bem, da justiça e da verdade, nem todas contemplam um fim edificante ou moral: o que se faz sempre presente é o simples prazer de contar. A influência oriental se depreende da estrutura labiríntica e pelo cumprimento do destino anunciado.
"Rei Mirko e o Encantador", composta de vários episódios, é a mais longa dessas histórias, tomando quase toda a segunda metade do livro. Destaca-se pelo ritmo, pela diversidade dos personagens e pela trama movimentada e cheia de surpresas. Trata-se de uma versão belíssima da história do sapo que vira príncipe por conta do amor de uma princesa.
Elek Benedek (1859-1929), jornalista, crítico literário, editor, político, autor prolífico de novelas para a juventude, tradutor de lendas estrangeiras, foi o cronista dos costumes, do cotidiano e do folclore dos povoados de língua húngara espalhados pelo sudeste da Transilvânia, berço fantástico do conde Drácula, hoje parte da Romênia. Dedicou-se a transformar a utilização sistemática da literatura na educação das crianças em prioridade política do Estado.
Escreveu livros de história de cunho didático, criou e adaptou contos, dirigiu periódicos para jovens. É tido como o fundador da literatura infantil de seu país. Em 1885 editou coleção de fábulas considerada o primeiro livro infantil de valor literário em húngaro. Entre 1894 e 1896 publicou cinco volumes de contos e lendas da Hungria preparados para a exposição do milênio em Budapeste. Como Bártok na música, reuniu as histórias passadas entre as gerações de contadores que perambulavam pelas aldeias da região.
Para os moradores desses lugarejos, muitos dos personagens dessas fantasias que povoavam as pausas para descanso do trabalho ou as noites invernais não pertenciam ao mundo da ficção: eles acreditavam na realidade dos feitiços e encantamentos.
As tramas dessas narrativas, superponíveis aos enredos do folclore de outras nações e inspiradoras das produções pasteurizadas destinadas às crianças dos nossos dias, evidenciam não a existência de um inconsciente coletivo, mas, sim, a estrutura universal do inconsciente.
Paulo Schiller traduziu do húngaro "O Legado de Eszter" e "Veredicto em Canudos", ambos de Sándor Márai



O Mundo dos Contos e Lendas da Hungria    
Autor: Elek Benedek
Tradução: Ildikó Sütö
Editora: Landy
Quanto: R$ 35 (363 págs.)




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