São Paulo, sábado, 22 de junho de 2002

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BLOOMSDAY

Festa refaz parte da trajetória do personagem de Joyce

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM DUBLIN

Bloomsday é o dia de Leopold Bloom, ou melhor, o da comemoração do dia em que o personagem de Joyce vive em "Ulisses" a sua história: 16 de junho de 1904. Também é o dia em que Joyce encontrou Nora Barnacle, a companheira. Hoje, Bloomsday é celebrado em diferentes países e em mais de 200 cidades.
Em Dublin, a festa começou uma semana antes do dia e se realizou através de manifestações nas ruas, nas margens do Liffey, no cemitério, no James Joyce Center. Havia várias tours organizadas para mostrar a relação entre a obra e a cidade. Permitiam descobrir o quão decisivo é o conhecimento desta para entender o "Ulisses", que Joyce escreveu com um mapa ao seu lado e uma idéia precisa do lugar onde cada cena se desenrola.
Nessa torre, Martello Tower, se passa o primeiro capítulo, diz o guia. Um ator vestido de penuar lê o que Buck Mulligan disse para Stephan Dedalus no romance: "Você não foi capaz de se ajoelhar e rezar por sua mãe, quando ela, já no leito de morte, te pediu isso".
"Por aqui passou o funeral de Paddy Dignam", acrescenta o guia noutro ponto. Ou então: "Na esquina desta rua, Bloom comprou o rim para o café da manhã de Molly e, neste pub, os dois se encontraram".
Nessa tour -que podia durar duas horas ou o dia inteiro- os dublinenses contavam a história da sua cidade contando a do "Ulisses". O culto de Joyce os torna particularmente criativos na difusão da obra. Recriaram, por exemplo, no cemitério de Glasnevin, o enterro de Paddy Dignam, personagem do romance. Puseram o seu caixão numa carruagem, puxada por dois cavalos pretos e dirigida por dois cocheiros de fraque, que atravessou o cemitério exatamente como no livro, mas parou diante dos túmulos das pessoas que, no começo do século, inspiraram os personagens e agora estão em Glasnevin.
Ao longo do enterro, um ator, vestido de padre, leu os textos relativos ao funeral. E o guia não perdeu a ocasião de contar a história dos grandes revolucionários ali enterrados. Falou de Emmet, O'Connell e Parnell, dizendo que do martírio surgiu a nação irlandesa. Bloomsday também é um culto dos ancestrais.
A comemoração mais impressionante foi a do próprio dia 16, que começou com um café da manhã na frente do James Joyce Center. As pessoas estavam vestidas como na época de Bloom, e os pratos servidos eram os mencionados no livro. Mesmo quem não gosta de tomar cerveja e comer rim de porco de manhã foi tomado pelo que ouvia. Os textos dos diferentes livros de Joyce ditos por atores de boina e bengala ou por atrizes de saia longa e chapéu de palha, carregando cestas coloridas repletas de frutos, folhas, flores e botões. Textos ditos séria ou satiricamente para perpetuar o espírito irreverente do escritor.
"Last but not least", quem conseguiu entrar no centro, apinhado de gente, pôde ver o quarto recém-inaugurado de Molly Bloom. Nele, uma irlandesa de cabelos até o joelho, Amy Redmond, com um camisolão branco de época, estava deitada na cama e se despia de suas vergonhas ousando de hora em hora o monólogo da mulher adúltera de Bloom que termina assim: "Ele então me perguntou se eu queria dizer sim minha flor da montanha e eu primeiro pus os meus braços em volta dele sim e puxei ele para ele sentir os meus peitos todos perfume sim e o coração dele batia como louco e eu disse sim, eu quero sim".


Betty Millan é escritora e psicanalista, autora de "O Clarão"



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