São Paulo, sábado, 22 de junho de 2002

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MÚSICA ERUDITA

Os futuros do passado de Luciano Berio

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Duas gerações aprenderam a gostar de música contemporânea ouvindo a "Sinfonia" (1968) de Luciano Berio. Cansada de ser contemporânea, a "Sinfonia" volta agora como um clássico; ou pelo menos foi assim que a Osesp fez soar essa música, quinta-feira, na Sala São Paulo.
Na programação original, Berio estaria na cidade para o concerto; motivos de doença impediram o compositor septuagenário de viajar. Teria sido uma honra e tanto ver o mestre no pódio; mas, cá entre nós, o substituto fez mais do que bonito. Elegante e energético, à vontade seja na massa gigantesca da megasinfônica seja nas miniorquestras de câmara que a música vai inventando, Lothar Koenigs fez a Osesp tocar a "Sinfonia" com naturalidade, e sobrenaturalidade também.
Quem diria que a orquestra nasceu para tocar música contemporânea? Mas nasceu anteontem, afinal, se a ocasião desculpa este exagero.
Antes que a gente se perca nos esplendores de 1968, cabe comentar o "Concertino" do mesmo Berio, que serviu para abrir o apetite. Muitos dos gestos típicos de Berio já estão aqui nesta peça de 1949: paisagens harmônicas mudando aos poucos de luz; longos pedais nas cordas; trinados que suspendem a música no ar. Harpa e celesta formando um centauro, cumprindo papel de anfitrião para o bicho solista de duas cabeças: clarinete (Ovanir Buosi) e o violino (Eugen Bold).
Mas, saído das fraldas, Berio já escrevia para os instrumentos melhor do que qualquer um de sua geração. Nas melodias caleidoscópicas, toda a história de um e outro se vê reanimada. Momentos impressionantes de sugestão noturna. Lindo andante final, que se quebra subitamente em silêncio, para não dizer em futuro.
O futuro do passado parece um tema de Schubert (1797-1828), também nesse contexto. O futuro é ele mesmo, adivinhando-se em Mozart, que habita a "Sinfonia nš 5" como um bom fantasma. Intensidade rara da orquestra. Intensidade não é a palavra: presença. A Osesp estava presente na música, compasso após compasso. E a música, agradecida, retribuiu com cargas de verdade e de beleza.
Já na "Sinfonia" o tema parece mais o passado do futuro. Não só no famoso terceiro movimento -a espetacular colagem de pedaços de música sobre o chão do "scherzo" da "Sinfonia nš 2" de Mahler, com direito a colagens verbais também (de Beckett a Lévi-Strauss). Ou no segundo, um monumento a Martin Luther King em forma de música, as vogais se sucedendo ao longo da série repetida de sete notas até formarem o nome do pastor. É a "Sinfonia" inteira que soa agora como citação de si, ou de uma tradição que ela mesma instaura, para se renovar no infinito dos dias.
Paulo Álvares, grande pianista, modestamente comendo a bola no canto do palco.
E os Swingle Singers? Herdeiros do conjunto que estreou a "Sinfonia" em Nova York, mesclaram-se à orquestra como a música pede, sem se apagar nem brilhar demais.
Que música, que noite. Até a Copa desaparece da mente, reduzida a um jogo de futebol que ninguém pensaria em assistir às 3h30. São 3h25, e nenhum de nós tem ânimo para ver no que vai dar. Quem era mesmo que jogava?


Concerto da Osesp     
Onde: Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes, s/nš, SP, tel. 0/xx/11/3337-5414)
Quando: hoje, às 16h30
Quanto: de R$ 12 a R$ 36




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