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WALTER SALLES
Cinema e futebol
Como entrego esta coluna às quintas-feiras, escrevo
sem saber do resultado do jogo
entre Brasil e Inglaterra. Quando
você estiver lendo estas linhas, estaremos todos incensando ou xingando Felipão, lamentando as falhas na defesa ou, como diria Jorge Ben Jor, aplaudindo as jogadas
celestiais dos nossos atacantes.
Qualquer que tenha sido o resultado, uma coisa é certa. Poucos
eventos geram tantas reações
apaixonadas quanto a Copa do
Mundo. Até os cardeais do Vaticano atiraram no árbitro equatoriano que despachou o time italiano de volta para casa. O parlamento inglês passou a semana especulando se haveria ou não feriado nacional em caso de vitória
numa final. Milhões de técnicos
brotam do nada. Um exemplo:
um amigo que mora há 20 anos
em Paris me liga a cada cinco minutos reclamando da não-escalação de Ricardinho. Sem nunca ter
visto o Corinthians jogar.
Se viramos (quase) todos fanáticos a cada quatro anos, imagino
que seja em parte para fazermos
finalmente parte de um todo durante 90 minutos, a pátria de chuteiras, que mascara por um curto
espaço de tempo a nossa fratura
social. Mas há algo mais a justificar o nosso interesse. Algo inerente ao jogo, um drama extraordinariamente potente, estruturado
em dois atos de 45 minutos cada,
com um possível terceiro ato, a
prorrogação. E uma coda terrível,
imprevisível, os pênaltis. Sem falar naquilo que eu mais detesto
no futebol, o gol de ouro, que interrompe secamente o jogo, a narrativa. Como um coração que pára de bater de um instante para o
outro.
O jogo da Coréia contra a Itália,
por exemplo, foi um drama primoroso e cativante. Não faltaram
situações inesperadas, reviravoltas no placar nos instantes finais
do tempo regulamentar, nem a
heroificação do jogador coreano
que imolou a Itália depois de ter
perdido um pênalti no início do
jogo. Em termos de estrutura dramática, de emoção e de suspense,
é difícil encontrar algo comparável no cinema ou na televisão.
Há pouco, Kleber Mendonça,
um talentoso crítico de cinema da
terra de Rivaldo (Pernambuco),
perguntou-me por que o futebol,
que concentra a tensão e o conflito necessários a toda narrativa cinematográfica, era tão pouco representado no cinema brasileiro
de ficção. Difícil responder. A
multiplicação e consequente banalização dos jogos na TV pode
ser parte da explicação.
Sintomaticamente, o futebol é
raramente enfocado nas telas dos
países em que ele é popular, como
a Itália, a Espanha, a França ou o
Brasil. Na Inglaterra, a exceção é
"Meu Nome É Joe", do mestre Ken
Loach, que contém uma divertidíssima homenagem à seleção canarinha de 70. Há também menções de futebol em dois filmes excepcionais: "E a Vida Continua",
de Abbas Kiarostami, e "A Cidade Branca", de Alain Tanner, em
que Bruno Ganz torce pelo Brasil
na Copa de 86. E o futebol é o centro de um filme menor de John
Huston, "Fuga para a Vitória",
em que Pelé bate uma bolinha.
É preciso voltar aos anos 80 para encontrar filmes de ficção em
que o futebol brasileiro era o pano
de fundo de histórias bem arquitetadas, como "Asa Branca - Um
Sonho Brasileiro", o belo filme de
Djalma Limongi Batista, e o
igualmente bom "Boleiros", de
Ugo Giorgetti. Os curtas-metragistas foram mais prolíficos, muitas vezes com ótimos filmes sobre
o nobre esporte bretão. É o caso de
"Barbosa", de Jorge Furtado,
"Uma História de Futebol", de
Paulo Machline e roteiro de José
Roberto Torero, "Cartão Vermelho", de Laís Bodanski, e "Rádio
Gogó", do diretor baiano José
Araripe.
A paixão espasmódica do cinema brasileiro pelo futebol começou nos anos 30, quando "Campeões de Futebol", de Genésio Arruda (1932), e "Futebol em Família", dirigido por Rui Costa
(1938), foram vistos por milhares
de pessoas. Mas devemos a Joaquim Pedro de Andrade o filme
definitivo sobre o futebol no Brasil: o documentário "Garrincha, a
Alegria do Povo". Extraordinário
até hoje.
Há ainda as imagens inesquecíveis do Canal 100, que sabia filmar futebol como ninguém. Mas
é necessário concordar com Kleber: é pouco. Até porque o futebol
sempre representou no Brasil algo
que transcende o esporte. Para
muitos jovens, o futebol é o veículo para quebrar as barreiras de
classe e de cor existentes no país e
romper o apartheid social brasileiro.
Tem mais: o campo de futebol é
um dos únicos espaços onde as regras, as leis, são conhecidas, respeitadas, e são as mesmas para
todos. Convenhamos, é um dos
poucos lugares do Brasil onde isso
acontece. E essa extraordinária
carga simbólica está, certamente,
pouco representada na tela.
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