São Paulo, sábado, 22 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER SALLES

Cinema e futebol

Como entrego esta coluna às quintas-feiras, escrevo sem saber do resultado do jogo entre Brasil e Inglaterra. Quando você estiver lendo estas linhas, estaremos todos incensando ou xingando Felipão, lamentando as falhas na defesa ou, como diria Jorge Ben Jor, aplaudindo as jogadas celestiais dos nossos atacantes.
Qualquer que tenha sido o resultado, uma coisa é certa. Poucos eventos geram tantas reações apaixonadas quanto a Copa do Mundo. Até os cardeais do Vaticano atiraram no árbitro equatoriano que despachou o time italiano de volta para casa. O parlamento inglês passou a semana especulando se haveria ou não feriado nacional em caso de vitória numa final. Milhões de técnicos brotam do nada. Um exemplo: um amigo que mora há 20 anos em Paris me liga a cada cinco minutos reclamando da não-escalação de Ricardinho. Sem nunca ter visto o Corinthians jogar.
Se viramos (quase) todos fanáticos a cada quatro anos, imagino que seja em parte para fazermos finalmente parte de um todo durante 90 minutos, a pátria de chuteiras, que mascara por um curto espaço de tempo a nossa fratura social. Mas há algo mais a justificar o nosso interesse. Algo inerente ao jogo, um drama extraordinariamente potente, estruturado em dois atos de 45 minutos cada, com um possível terceiro ato, a prorrogação. E uma coda terrível, imprevisível, os pênaltis. Sem falar naquilo que eu mais detesto no futebol, o gol de ouro, que interrompe secamente o jogo, a narrativa. Como um coração que pára de bater de um instante para o outro.
O jogo da Coréia contra a Itália, por exemplo, foi um drama primoroso e cativante. Não faltaram situações inesperadas, reviravoltas no placar nos instantes finais do tempo regulamentar, nem a heroificação do jogador coreano que imolou a Itália depois de ter perdido um pênalti no início do jogo. Em termos de estrutura dramática, de emoção e de suspense, é difícil encontrar algo comparável no cinema ou na televisão.
Há pouco, Kleber Mendonça, um talentoso crítico de cinema da terra de Rivaldo (Pernambuco), perguntou-me por que o futebol, que concentra a tensão e o conflito necessários a toda narrativa cinematográfica, era tão pouco representado no cinema brasileiro de ficção. Difícil responder. A multiplicação e consequente banalização dos jogos na TV pode ser parte da explicação.
Sintomaticamente, o futebol é raramente enfocado nas telas dos países em que ele é popular, como a Itália, a Espanha, a França ou o Brasil. Na Inglaterra, a exceção é "Meu Nome É Joe", do mestre Ken Loach, que contém uma divertidíssima homenagem à seleção canarinha de 70. Há também menções de futebol em dois filmes excepcionais: "E a Vida Continua", de Abbas Kiarostami, e "A Cidade Branca", de Alain Tanner, em que Bruno Ganz torce pelo Brasil na Copa de 86. E o futebol é o centro de um filme menor de John Huston, "Fuga para a Vitória", em que Pelé bate uma bolinha.
É preciso voltar aos anos 80 para encontrar filmes de ficção em que o futebol brasileiro era o pano de fundo de histórias bem arquitetadas, como "Asa Branca - Um Sonho Brasileiro", o belo filme de Djalma Limongi Batista, e o igualmente bom "Boleiros", de Ugo Giorgetti. Os curtas-metragistas foram mais prolíficos, muitas vezes com ótimos filmes sobre o nobre esporte bretão. É o caso de "Barbosa", de Jorge Furtado, "Uma História de Futebol", de Paulo Machline e roteiro de José Roberto Torero, "Cartão Vermelho", de Laís Bodanski, e "Rádio Gogó", do diretor baiano José Araripe.
A paixão espasmódica do cinema brasileiro pelo futebol começou nos anos 30, quando "Campeões de Futebol", de Genésio Arruda (1932), e "Futebol em Família", dirigido por Rui Costa (1938), foram vistos por milhares de pessoas. Mas devemos a Joaquim Pedro de Andrade o filme definitivo sobre o futebol no Brasil: o documentário "Garrincha, a Alegria do Povo". Extraordinário até hoje.
Há ainda as imagens inesquecíveis do Canal 100, que sabia filmar futebol como ninguém. Mas é necessário concordar com Kleber: é pouco. Até porque o futebol sempre representou no Brasil algo que transcende o esporte. Para muitos jovens, o futebol é o veículo para quebrar as barreiras de classe e de cor existentes no país e romper o apartheid social brasileiro.
Tem mais: o campo de futebol é um dos únicos espaços onde as regras, as leis, são conhecidas, respeitadas, e são as mesmas para todos. Convenhamos, é um dos poucos lugares do Brasil onde isso acontece. E essa extraordinária carga simbólica está, certamente, pouco representada na tela.



Texto Anterior: "Coyote" chega para instaurar "selvageria"
Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: Texto de Borges é vendido por R$ 530 mil
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.