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BERNARDO CARVALHO
Liturgia do medo
Desde março, o Teatro da
Vertigem desenvolve um
projeto de pesquisa, do qual participo como dramaturgo, em Brasilândia, zona norte de São Paulo.
Uma vez por semana, o diretor
propõe improvisações e exercícios
aos atores. Num exercício recente,
cada indivíduo do grupo foi deixado num ponto aleatório da periferia, para que durante uma hora interagisse com a vida do lugar. A mim coube uma igreja
evangélica.
Um homem montava guarda
do lado de fora da loja convertida
em igreja. Perguntei se podia assistir ao culto das três horas e entrei. Não sabia que era o pastor. A
sala vazia tinha as paredes pintadas de azul claro, o chão de ladrilhos e filas de cadeiras pretas estofadas. No fundo, um estrado com
o púlpito, uma bateria e um órgão elétrico. Acima do estrado,
nuvens pintadas sobre o azul da
parede.
Faltavam 15 minutos. O tempo
de examinar os formulários e envelopes para as ofertas (em dinheiro) empilhados numa mesa
ao lado da porta. Fiquei intrigado
com uma citação bíblica num dos
formulários, que ali ganhava um
sentido perturbador, associando
a igreja ao mundo da exceção,
onde a lei não entra: "(...) Fé,
mansidão, temperança. Contra
essas coisas não há lei".
Pouco antes das três, apareceu
uma mulher de tailleur branco
com gola e bolsos pretos, que
cumprimentou o pastor e veio até
mim. Pediu que eu me sentasse
mais à frente. A "reunião" ia começar. E foi quando comecei a ficar nervoso. Não havia ninguém
além de mim. Queria assistir, não
participar. Durante mais de uma
hora eu seria o objeto exclusivo
do esforço do pastor e de sua assistente, a evangelista obreira, para me tirar das garras do diabo e
me converter em crente, na sua
luta diária para angariar almas e
fundos para a causa de Jesus.
De mãos dadas numa espécie de
ritual de abertura, pastor e evangelista trocaram palavras incompreensíveis que na Idade Média
teriam sido logo associadas ao demônio. O pastor ligou o órgão elétrico numa cadência de fundo, típica de churrascaria, e subiu ao
púlpito com as primeiras palavras do sermão. A evangelista se
postou ao meu lado, de forma a
poder me vigiar e dirigir. O pastor
me mandou fechar os olhos, pôr a
mão no coração e dizer: Glória ao
Senhor! "Mais alto!" Eu repeti:
Glória ao Senhor! "Mais alto! Dispa-se da sua vergonha! Você sente
Jesus entre nós? Diga! Sente ou
não sente?!" Sinto. "Mais alto!
Mais alto!" Tinha começado a liturgia do terror.
Depois vieram as palmas, cujo
ritmo me era imposto pela evangelista, enquanto o pastor entoava uma canção com palavras bíblicas. Se eu parava de bater palmas, a evangelista imediatamente retomava a batida, dando a entender que eu não devia esmorecer. Os dois cantavam. Eu batia
palmas e, de vez em quando, induzido pelos dois, gritava: "Glória ao Senhor!".
Me chamavam de "amado". Lá
pelas tantas, o pastor disse que o
amado podia parar de bater palmas e se sentar para preencher o
formulário entregue pela evangelista numa prancheta. Não havia
escapatória. Era um pedido de
oração com uma lista de problemas (desemprego, dívidas, barulhos ou vozes do Além, pessoas desaparecidas, vícios que atrapalham, dor de cabeça estranha
etc.) que deviam ser assinalados
com um "x". Apenas uma das opções pedia esclarecimentos: "Se
você sofre de alguma doença que
não aparece nos exames e chapas,
ou o médico examina e diz que
você não tem nada, descreva o
que sente". No final, era preciso
deixar nome, endereço e telefone.
O pastor me chamou até o púlpito. Fui com o formulário preenchido na mão. Ele me disse: "De
Deus ninguém zomba! Deus não
perdoa! Você vai assumir um
compromisso com Jesus. Vai voltar aqui durante sete semanas.
Compromisso com Jesus não pode
ser quebrado. Você vai assumir o
compromisso, amado?". "Vou ter
que pensar." (!?) "Tem que decidir
agora. Você está com Jesus ou
com o diabo?! Vai assumir o compromisso ou não vai?"
A intimidação e as ameaças
prosseguiram até o pastor, irritado, se dar conta do grau de dificuldade e me mandar de volta
para o meu lugar. Então, recorreu
a um papelinho (que eu supus ser
um roteiro para o caso de recalcitrantes) e passou a seguir os passos de uma nova tática, com mais
orações, olhos fechados e palmas.
Sempre achei que as igrejas
evangélicas tinham vingado no
Brasil por terem assumido o vácuo deixado pelo Estado entre os
chamados excluídos. Nunca tinha me passado pela cabeça que
a estratégia é a do medo e da
coerção, a mesma usada pela
Igreja Católica em meio à barbárie da Idade Média, sendo que
agora nem precisa haver religiosidade. Quem entra em busca de
acolhimento espiritual é recebido
com ameaças. Do lado de fora estava ruim? Seja bem-vindo, aqui
dentro não é diferente.
Eu estava irredutível. O pastor
apelou: "Deus criou a autoridade.
Não basta obedecer à polícia lá
fora. Tem que obedecer ao pastor
e à evangelista aqui dentro, representantes da autoridade de
Deus". Ou seja: este é um mundo
do terror em que você sobrevive
acuado entre a autoridade do tráfico, da polícia e da igreja. "Contra essas coisas não há lei." Nem a
quem recorrer.
Já fazia mais de uma hora que
eu estava ali. O pastor me mandou fechar os olhos de novo. Me
levantei e saí, enquanto ele praguejava: "Você não pode sair.
Não fez a oferta!".
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