São Paulo, segunda, 22 de junho de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice Algumas idéias para a sobrevivência na Copa
FERNANDO GABEIRA
Explicar às crianças como são
sorteados os carros ou então
trancar os telefones. A propaganda fala sempre dos carros
que saíram e dos vencedores.
Não se ocupa dos milhões que
telefonaram e perderam.
Cria-se a falsa impressão do
anúncio: é só ligar para ganhar.
Não aceitar a buzina que o vizinho oferece na hora do jogo.
Isso mostra uma certa reserva
em relação ao barulho. Se ele
insistir muitas horas depois do
jogo, tem-se moral para aconselhar a guardar energia para
o próximo. Essas buzinas são o
lado doloroso dos gols do Brasil. Desejar que a bola bata na
trave, nesse caso, é mais doloroso ainda.
Não acreditar que tudo está
mesmo pintado de verde e
amarelo e que os franceses passam a noite cantando depois
de cada vitória do Brasil. A
Copa é um pouco a sublimação
da guerra, mas o sonho de conquista no fundo é monótono:
se o mundo todo fosse verde e
amarelo, o que seria das outras
cores?
Duvidar da imprensa brasileira quando afirma que todos
tremem diante do time nacional. As manchetes diziam isso:
"Itália treme ao pensar no
Brasil". O texto dizia: "Primeiro precisamos pensar no jogo
da Áustria, só depois vamos
pensar no próximo adversário".
Não sair imediatamente depois do jogo, sobretudo em certas áreas do Rio. As imagens
dos hooligans ingleses acabaram impressionando a galera.
Se o carro for cercado por torcedores, não resista, mas deixe
bem claro que você fala o idioma sem sotaque e, se possível,
levante qualquer símbolo verde e amarelo para confirmar
sua adesão. Cuidado para não
exibir nada de outras cores, o
azul lembra a Itália, o azul e
branco, a Argentina.
Controle-se para não associar
tudo o que você vai comprar
com o ato de fazer um gol pelo
Brasil. A propaganda pode levá-lo ao consumo mais desenfreado, com a ilusão de que você está apenas aplicando uma
goleada no adversário. Na chegada das contas, você vai saber
quem perdeu o campeonato. A
Nike está cobrando R$ 80 por
uma camiseta oficial do Brasil.
Vá oferecer uma camiseta da
Arábia Saudita como alternativa, e as crianças não o perdoarão nunca.
Não adianta ficar discutindo
na esquina o que o Dunga disse para o Bebeto. A televisão é
muito clara, e o repertório de
palavrões, muito limitado.
Basta olhar o que dizem quando perdem uma bola -é o
mesmo que dizemos quando
martelamos o dedo. Nisso, todos os mortais se igualam: a
leitura dos lábios dispensa locutores.
Há um cara na televisão que
pergunta se você quer dindim.
Os que transmitem as partidas
repetem para você o que está
acontecendo em campo e já foi
entendido e processado há
muito tempo por quem entende um pouco de futebol. Não é
nada contra você: eles querem
apenas ser simples, universais,
atingir os milhões de espectadores que sentam diante da
TV nestes dias de Copa. Perdoe
o cara do dindim e o ufanismo
do locutor da Globo.
Aliás, sempre via a Globo como nacionalista, embora suas
novelas de época me dêem a
impressão de algo que se passou nos Estados Unidos. Sinto
que são épicos também, e só
uma pesquisa local poderá explicar a causa. Minha hipótese:
vêem tudo na vida como uma
batalha decisiva, por causa do
trânsito no Jardim Botânico.
Lembrança para daqui a quatro anos: todas as boas idéias e
iniciativas têm de esperar a
Copa do Mundo. Não adianta
fazer nada de novo, pois só há
um espaço para o novo: o campo de futebol. E o momento de
comprovação daquela lei: tudo
que pode dar errado por causa
da Copa do Mundo acabará
dando errado. Todos, você inclusive, usarão sem parar o argumento da temporada: bem
que tentei resolver a tempo,
mas houve jogo, tudo parou. |
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