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FESTIVAL DE TEATRO DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO
Cias. Absurda e Acomica se juntam na encenação de 'Lusco-Fusco'
Montagem de MG une lirismo à denúncia social
SERGIO SALVIA COELHO
ENVIADO A SÃO JOSÉ DO RIO PRETO
"Lusco-Fusco" é uma fábula inventada no infeliz,
como diria Guimarães Rosa. Partindo de um retrato áspero da
subvida das favelas, supera a denúncia óbvia com lirismo transtornante e humor que flerta com
o autodeboche sem se esvaziar no
menosprezo da caricatura.
Claro que a trama se deleita às
vezes no miserabilismo, com esse
pai que gasta a aposentadoria nos
bordéis e por isso não tem seus
pés lavados pelo virtuoso filho
Abel, que prefere lavar os da mãe,
e Jonilde, o filho travesti, que veste
de menina seu irmão autista Elvirinho. Mas o moralismo de melodrama é evitado, primeiro com o
tratamento arquetípico dado aos
personagens, que remetem com
seus nomes ao conflito primordial de Abel e Caim, reforçado pela caracterização física, cada qual
com uma postura, um ritmo e
uma cor no figurino que os fazem
ser quase como arcanos do tarô.
Depois, as cartas vão sendo misturadas, quebrando o maniqueísmo: Jonilde, o pecador, é o que
traz para casa o único sustento, e
pode presentear a família com
roupas novas, além de um vídeo
para o pai ver pornografia -o
que o mantém longe dos bordéis.
Abel, o filho que aprendeu a ler
com um evangélico, é quem poderia mais ajudar -mas a aterrorizante revelação do apocalipse o
levou a cavar um buraco no chão
de seu quarto, em busca delirante
de uma utopia. Helenilde, a mãe
submissa, tem momentos de rara
crueldade com seu marido Josué.
Elvirinho, o autista, neutro em
meio aos conflitos, é o que remete
mais ao universo realista fantástico de Guimarães Rosa: parece saído do conto "A Voz do Morro".
Com esse tema que se arrisca a
cair no delírio trash, na escatologia de sangue, merda e esperma, a
meticulosa direção de arte impõe
logo respeito. A cenografia de Eri
Gomes, aparentemente naturalista, separa cada precário quarto da
favela em pequenos cenários independentes, como as "mansões"
do palco simultâneo medieval. O
figurino de Luiz Otávio Brandão
tanto marca a característica básica de cada um como lhe dá depois
uma saída mágica.
A inteligência de encenação de
Eid Ribeiro é particularmente clara na trilha, que ele divide com
Juan Cristóbal. A primeira cena é
ritmada apenas pelo órgão de Elvirinho e de arrastar de pés, sons
guturais que criam delicada paisagem sonora; quando surge música, é de modo naturalista.
Como nos melhores espetáculos, no entanto, são os atores que
garantem a viabilidade do projeto. Nelson Bambam Júnior faz Jonilde com uma fascinante mistura
de virilidade e sensualidade; Luiz
Lerro, escapando dos clichês do
deficiente mental, é um cativante
Elvirinho. O Abel de João Batista
tem algo do herói romântico do
subtítulo, em seu delírio pueril.
Fábio Furtado e Silvana Stein, os
pais, trabalham em um registro
mais naturalista, mas com uma
qualidade de detalhes que evoca o
"Café com Queijo" do Lume.
Fruto da reunião de dois grupos, Cia. Absurda e Cia. Acomica,
o espetáculo mantém uma instigante tensão entre a angústia lírica becketiana e a crueldade hilariante do clown. Prova, junto com
o belo e delicado "Coisas Invisíveis", da Cia. Clara, que também
marcou presença neste festival, o
quanto Minas Gerais está maduro
no campo do teatro experimental.
Avaliação:
O crítico Sergio Salvia Coelho e a fotógrafa Lenise Pinheiro viajam a convite
do festival
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