São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2004

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FESTIVAL DE TEATRO DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO

Cias. Absurda e Acomica se juntam na encenação de 'Lusco-Fusco'

Montagem de MG une lirismo à denúncia social

SERGIO SALVIA COELHO
ENVIADO A SÃO JOSÉ DO RIO PRETO

"Lusco-Fusco" é uma fábula inventada no infeliz, como diria Guimarães Rosa. Partindo de um retrato áspero da subvida das favelas, supera a denúncia óbvia com lirismo transtornante e humor que flerta com o autodeboche sem se esvaziar no menosprezo da caricatura.
Claro que a trama se deleita às vezes no miserabilismo, com esse pai que gasta a aposentadoria nos bordéis e por isso não tem seus pés lavados pelo virtuoso filho Abel, que prefere lavar os da mãe, e Jonilde, o filho travesti, que veste de menina seu irmão autista Elvirinho. Mas o moralismo de melodrama é evitado, primeiro com o tratamento arquetípico dado aos personagens, que remetem com seus nomes ao conflito primordial de Abel e Caim, reforçado pela caracterização física, cada qual com uma postura, um ritmo e uma cor no figurino que os fazem ser quase como arcanos do tarô.
Depois, as cartas vão sendo misturadas, quebrando o maniqueísmo: Jonilde, o pecador, é o que traz para casa o único sustento, e pode presentear a família com roupas novas, além de um vídeo para o pai ver pornografia -o que o mantém longe dos bordéis. Abel, o filho que aprendeu a ler com um evangélico, é quem poderia mais ajudar -mas a aterrorizante revelação do apocalipse o levou a cavar um buraco no chão de seu quarto, em busca delirante de uma utopia. Helenilde, a mãe submissa, tem momentos de rara crueldade com seu marido Josué.
Elvirinho, o autista, neutro em meio aos conflitos, é o que remete mais ao universo realista fantástico de Guimarães Rosa: parece saído do conto "A Voz do Morro".
Com esse tema que se arrisca a cair no delírio trash, na escatologia de sangue, merda e esperma, a meticulosa direção de arte impõe logo respeito. A cenografia de Eri Gomes, aparentemente naturalista, separa cada precário quarto da favela em pequenos cenários independentes, como as "mansões" do palco simultâneo medieval. O figurino de Luiz Otávio Brandão tanto marca a característica básica de cada um como lhe dá depois uma saída mágica.
A inteligência de encenação de Eid Ribeiro é particularmente clara na trilha, que ele divide com Juan Cristóbal. A primeira cena é ritmada apenas pelo órgão de Elvirinho e de arrastar de pés, sons guturais que criam delicada paisagem sonora; quando surge música, é de modo naturalista.
Como nos melhores espetáculos, no entanto, são os atores que garantem a viabilidade do projeto. Nelson Bambam Júnior faz Jonilde com uma fascinante mistura de virilidade e sensualidade; Luiz Lerro, escapando dos clichês do deficiente mental, é um cativante Elvirinho. O Abel de João Batista tem algo do herói romântico do subtítulo, em seu delírio pueril. Fábio Furtado e Silvana Stein, os pais, trabalham em um registro mais naturalista, mas com uma qualidade de detalhes que evoca o "Café com Queijo" do Lume.
Fruto da reunião de dois grupos, Cia. Absurda e Cia. Acomica, o espetáculo mantém uma instigante tensão entre a angústia lírica becketiana e a crueldade hilariante do clown. Prova, junto com o belo e delicado "Coisas Invisíveis", da Cia. Clara, que também marcou presença neste festival, o quanto Minas Gerais está maduro no campo do teatro experimental.


Avaliação:    

O crítico Sergio Salvia Coelho e a fotógrafa Lenise Pinheiro viajam a convite do festival


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