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análise
Poeta viveu encontro com terra mítica
CARLOS AUGUSTO CALIL
ESPECIAL PARA A FOLHA
O passageiro que desembarcou em fevereiro de 1924
do Formose no Rio 40 graus
vestindo terno cinza, a aba
do chapéu de feltro presa à
mão esquerda, era um escritor em crise. Desde a publicação dos "19 Poemas Elásticos", em que esticara a sensibilidade até rebentar, Blaise
Cendrars via a inspiração fugir-lhe. Ensaiava a passagem
da poesia ultramoderna para
o "romance fora de série",
conforme expressão cunhada por Alexandre Eulalio para dar conta de um gênero híbrido que recusava a psicologia das personagens e incorporava técnicas emprestadas
das artes plásticas, da música
e do cinema.
Ao aceitar o convite de
Paulo Prado, intelectual diletante e poderoso homem de
negócios, Cendrars agarrava-se à oportunidade de fugir
das disputas do grand monde
literário, além de tentar a
sorte e quem sabe fazer fortuna. "Parto para a América
do Sul... me propuseram diversos negócios que vou examinar in loco, especialmente
um de cinema que pode ser
interessante. Vou pensando
também no futuro das crianças. Posso entrar num negócio de terras de que me falaram se ele for sério."
A travessia do Atlântico
revelou-se altamente estimulante. Enquanto preparava os poemas coloquiais que
iriam constituir a sua primeira obra "brasileira", as
"Feuilles de Route", Cendrars retomava a bordo alguns projetos antigos de balé, poesia-montagem e romance, embalado pela chegada do calor e pela luminosidade crescente. Quando
cruza a linha do Equador, já
é um novo homem que vislumbra o Paraíso terrestre.
Sob o lema "Viver faz bem",
entrega-se com generosidade a uma experiência que irá
ampliar-lhe a percepção e
contribuir para o seu amadurecimento enquanto homem e escritor.
Instalado no hotel Vitória,
do largo do Paissandú, Cendrars começa a conquistar os
meios literários e cultivados
da Paulicéia pacata e provinciana. O grupo que o acolhe,
Oswald de Andrade, Tarsila
do Amaral, Paulo Prado, Olívia Guedes Penteado, Mário
de Andrade, leva-o para conhecer o Carnaval do Rio, o
circuito do Ouro das Minas,
as fazendas de café, a que
Cendrars reagia com um indefectível "Quelle merveille!" [Que maravilha!]. Contudo, a marca profunda dessas paisagens só será percebida pelos contemporâneos
quando a obra futura denunciar o seu impacto na memória do estrangeiro.
Praticamente todos os livros escritos depois de 1924
contêm alguma referência
direta ou indireta ao Brasil.
"L'Homme Foudroyé" (O
homem fulminado) e "Le
Lotissement du Ciel" são livros capitais, onde o país
comparece implícita ou explicitamente, compondo a
paisagem de uma terra alçada à dimensão de mito.
"Foi no Rio que aprendi a
desconfiar da lógica", disse
ele certa vez. O Brasil significou para Blaise Cendrars um
desafio à sua capacidade de
inventar e recontar histórias
verdadeiras. A matéria bruta, certa selvageria, a terra
que precisa ser domada, o
sentimento humano a explodir em intensa dramaticidade, tudo tocou o paladino da
simultaneidade, que nunca
mais se libertaria das promessas e frustrações de sua
aventura brasileira.
Seu último texto manuscrito, desfecho de um movimento cíclico, evocava a Páscoa, mas não aquela de Nova
York, a dos pobres vexados
de Divinópolis, de Sabará, da
viagem a Minas com os jovens amigos modernistas. Lá
ele deixara, sem o perceber,
seu coração de místico vagabundo, sonhando com a utopia do mundo.
CARLOS AUGUSTO CALIL é secretário Municipal da Cultura e diretor do documentário
"Acaba de Chegar ao Brasil o Bello Poeta
Francez Blaise Cendrars"
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