São Paulo, sábado, 22 de julho de 2006

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análise

Poeta viveu encontro com terra mítica

CARLOS AUGUSTO CALIL
ESPECIAL PARA A FOLHA

O passageiro que desembarcou em fevereiro de 1924 do Formose no Rio 40 graus vestindo terno cinza, a aba do chapéu de feltro presa à mão esquerda, era um escritor em crise. Desde a publicação dos "19 Poemas Elásticos", em que esticara a sensibilidade até rebentar, Blaise Cendrars via a inspiração fugir-lhe. Ensaiava a passagem da poesia ultramoderna para o "romance fora de série", conforme expressão cunhada por Alexandre Eulalio para dar conta de um gênero híbrido que recusava a psicologia das personagens e incorporava técnicas emprestadas das artes plásticas, da música e do cinema.
Ao aceitar o convite de Paulo Prado, intelectual diletante e poderoso homem de negócios, Cendrars agarrava-se à oportunidade de fugir das disputas do grand monde literário, além de tentar a sorte e quem sabe fazer fortuna. "Parto para a América do Sul... me propuseram diversos negócios que vou examinar in loco, especialmente um de cinema que pode ser interessante. Vou pensando também no futuro das crianças. Posso entrar num negócio de terras de que me falaram se ele for sério."
A travessia do Atlântico revelou-se altamente estimulante. Enquanto preparava os poemas coloquiais que iriam constituir a sua primeira obra "brasileira", as "Feuilles de Route", Cendrars retomava a bordo alguns projetos antigos de balé, poesia-montagem e romance, embalado pela chegada do calor e pela luminosidade crescente. Quando cruza a linha do Equador, já é um novo homem que vislumbra o Paraíso terrestre. Sob o lema "Viver faz bem", entrega-se com generosidade a uma experiência que irá ampliar-lhe a percepção e contribuir para o seu amadurecimento enquanto homem e escritor. Instalado no hotel Vitória, do largo do Paissandú, Cendrars começa a conquistar os meios literários e cultivados da Paulicéia pacata e provinciana. O grupo que o acolhe, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Paulo Prado, Olívia Guedes Penteado, Mário de Andrade, leva-o para conhecer o Carnaval do Rio, o circuito do Ouro das Minas, as fazendas de café, a que Cendrars reagia com um indefectível "Quelle merveille!" [Que maravilha!]. Contudo, a marca profunda dessas paisagens só será percebida pelos contemporâneos quando a obra futura denunciar o seu impacto na memória do estrangeiro. Praticamente todos os livros escritos depois de 1924 contêm alguma referência direta ou indireta ao Brasil.
"L'Homme Foudroyé" (O homem fulminado) e "Le Lotissement du Ciel" são livros capitais, onde o país comparece implícita ou explicitamente, compondo a paisagem de uma terra alçada à dimensão de mito. "Foi no Rio que aprendi a desconfiar da lógica", disse ele certa vez. O Brasil significou para Blaise Cendrars um desafio à sua capacidade de inventar e recontar histórias verdadeiras. A matéria bruta, certa selvageria, a terra que precisa ser domada, o sentimento humano a explodir em intensa dramaticidade, tudo tocou o paladino da simultaneidade, que nunca mais se libertaria das promessas e frustrações de sua aventura brasileira.
Seu último texto manuscrito, desfecho de um movimento cíclico, evocava a Páscoa, mas não aquela de Nova York, a dos pobres vexados de Divinópolis, de Sabará, da viagem a Minas com os jovens amigos modernistas. Lá ele deixara, sem o perceber, seu coração de místico vagabundo, sonhando com a utopia do mundo.


CARLOS AUGUSTO CALIL é secretário Municipal da Cultura e diretor do documentário "Acaba de Chegar ao Brasil o Bello Poeta Francez Blaise Cendrars"



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