São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2010

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comida

Ao molho pardo

A galinha feita no próprio sangue está quase extinta em São Paulo; não há produto certificado na cidade e as poucas casas que ainda preparam o prato estão ilegais

LUIZA FECAROTTA
DE SÃO PAULO

Laura era a galinha mais limpa e penteada do galinheiro. Tinha uma vidinha gostosa, bem como conta Clarice Lispector em "A Vida Íntima de Laura". Por um triz não perdeu a vida. Quem foi para a panela foi sua prima Zeferina. Ao molho pardo.
"Existe um modo de comer galinha que se chama galinha ao molho pardo. Você já comeu? O molho é feito com o sangue da galinha. Mas não adianta mandar comprar galinha morta: tem que ser viva e matada em casa para aproveitar o sangue."
Esse prato da cultura francesa adaptado pelos portugueses, que o trouxeram ao Brasil, "é feito aqui como naquela época", diz a pesquisadora Lecticia Cavalcanti.
Em São Paulo, a tradição está ameaçada: não há sangue certificado disponível. Quem vende o produto está ilegal. Não há lei que proíba a venda, mas há a exigência de registro no Sistema de Inspeção Estadual comprovando que o procedimento (caro e delicado) está regularizado.
Esqueça a alternativa de comprar a galinha viva e abatê-la. É proibido, segundo a Coordenadoria de Defesa Agropecuária do Estado (SP).
"É um drama fazer galinha cabidela. É impossível conseguir sangue", diz Hugo Delgado, do Obá, que não pôde fazer a receita -que embebe o frango em um molho suave e aveludado, de sabor próprio reforçado por temperos como alho e pimenta-do-reino- em um festival de cozinha pernambucana.
A chef Mara Salles, do Tordesilhas, que fez o prato por anos, também deixou de servi-lo. "Esse é o ponto final da galinha ao molho pardo. Não dá para ser ilegal."
Edinólia da Silva, por trás das panelas do Bar do Biu, tentou outra manobra. Depois de tirar o prato do cardápio por falta de fornecedor, insistiu até encontrar um senhor que trazia o produto do interior. "Ele oferece o sangue no saquinho", diz.
Já havia se queixado da dificuldade de obter o produto dias atrás. Procurada novamente pela reportagem, disse que o sangue "já acabou". "Não vou vender mais." A Folha revisitou o bar e o prato não estava disponível.
Numa viela da zona norte, a galinha ao molho pardo é a maior atração do Galinhada do Bahia. Raimundo Soares vai à roça, compra a galinha e leva até o restaurante. Lá, o animal é abatido e, dele, extraído o sangue, misturado a vinagre para não coagular.
"A galinha cabidela logo logo vai sair da culinária porque a Vigilância Sanitária proíbe matar." Ainda assim, Soares serve o prato. "O cliente pede e eu faço. Se não fizer, o cliente vai embora."
Na filial paulistana do tradicional Dona Lucinha, de Minas Gerais, Elza Nunes, faz diferente. Traz de lá o sangue congelado, obtido de galinhas de criação própria.
Mas, segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o transporte de um Estado para outro também é ilegal: o órgão não registra "sangue de ave para fins comestíveis, apenas para industrialização".
Para Elza, a informação é novidade: "Nunca soubemos disso e sempre transportamos." A casa, há 18 anos em SP, nunca teve problemas com a fiscalização (veja ao lado a posição da Secretaria Municipal de Saúde).
"Não posso infringir a lei. Enquanto eu não conseguir a licença, infelizmente vou ter que tirar do cardápio." Dito e feito. A reportagem esteve no local e o prato "mais gostoso da casa" não estava mais sendo servido.

FORA DA PAULICEIA
Nos anos 50, Maria Clara Rodrigues recebia clientes em sua casa de fazenda. Lá, os acompanhava até um "terreno grande com um pé de manga". Os comensais escolhiam os frangos a dedo e depois esperavam duas, três horas por seu preparo.
Naquela época -e ainda hoje- firmou-se o hábito de levar uma panela até o Maria das Tranças e voltar com uma marmita para casa.
O restaurante, que completa 60 anos em agosto e pretende abrir franquias em São Paulo e Brasília, também deve lançar um livro com a sua história neste semestre.
Na matriz, há um abatedouro. "Comércio de sangue "in natura" é proibido, mas eu uso para consumo no próprio restaurante, faço a venda do prato. Para isso, tenho alvará da Vigilância Sanitária", diz Ricardo Rodrigues, da terceira geração da família.
Em Pernambuco, compra-se o sangue em "açougues de confiança". Não há legislação que regulamente o comércio do produto e, portanto, não há fiscalização.
Segundo a Agência de Defesa e Fiscalização Agropecuária de Pernambuco, essa é uma "prática cultural, mas que já possui um prazo para acabar". Até 2013, os locais devem passar a vender apenas a ave e seus subprodutos "resfriados ou congelados, abatido com inspeção".
Por isso que, por enquanto, o Restaurante da Mira, um dos clássicos da cidade, não precisa se preocupar com a lei. Dona Aldemira Pereira Lima, aos 71 anos, ainda abate os animais no local.
Como explica um de seus filhos, o "showman" Edmilson, "a galinha sofre uma indexação sanguínea". Depois deve-se bater o sangue com garfo. "Intensamente".
A ave é servida envolta no sangue temperado com louro, coentro, sal, alho - "bastante alho"- e limão. "As pessoas se emocionam."


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