São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2010

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NINA HORTA

A sedução pelo côncavo


Só Freud pode explicar. Que nos mostrem uma tigela, um prato fundo e, pronto, estamos fisgadas

AS FEMINISTAS jogaram os sutiãs fora. Não foi difícil. Com eles, foram os tricôs, os bordados, a pia, o fogão. E o ferro de passar roupa. O ferro de passar roupa foi uma delícia de jogar. Infelizmente, algumas mulheres completamente sem sutiã não conseguiram se livrar de toda a tralha e continuaram apaixonadas por várias coisas que agridem o feminismo clássico.
Algumas, com gene de colecionador, continuaram com manias de louças, de vidros, por exemplo. Quando um design ou época as pega pelo gasnete, são capazes de vender a mãe sem piscar. São mulheres que não ligam a mínima para o dinheiro em si, mas para a louça que ele pode comprar. Foram-se o sutiã, a casa, o jardim, o tanque. O carro virou um monumento "vintage". Tudo por causa da mania de cumbucas. Há sempre que ter mais uma.
De repente, há um mês, mais ou menos, alguém me disse que nunca tinha visto os "bowls" de "café au lait" franceses. Fui mostrar o que eram. E estavam lá, à venda, empilhados uns sobre os outros. Foi ver e pensar: eu quero. Heidi tomava café da manhã com seu avô nessas cumbucas. Quer maior motivo para a cobiça? E o pior é que não tomamos café com leite aqui em casa. Mas servem para uma sopa de morangos, um caldo, servem para tudo.
Acontece que só Freud pode explicar. Que nos mostrem uma compoteira, uma tigela, um prato fundo e, pronto, estamos fisgadas. Se nos perguntarem qual o melhor lugar para comer feijoada, por exemplo, vamos dizer: prato fundo e colher.
A sedução pelo côncavo, uma tese a ser pesquisada. Quando terá isto começado? Ora, claro que já sei, nas idas ao centro da cidade com as mães, correndo por todas as lojas de louças enquanto mudávamos de um pé para outro, impacientes, de olho no cachorro-quente das Lojas Americanas ou na coalhada da Campo Belo. E ainda havia os bibelôs. Bibelô era um enfeitezinho, uma dançarina de louça, um cachorro em miniatura. Acabaram-se eles ou só a palavra?
Um amigo divorciou-se e andava feliz pela vida. Perguntamos o porquê de tanto alívio, afinal tinha uma mulher sensacional. "Objetos", sussurrava ele com certo medo de ainda ser atacado. "Objetos; minha casa não tem mais um objeto que seja."
Já viram a louça de Clarice Cliff? Para fazerem uma ideia, uma vez, em Londres, com minha filha, fomos visitar um museu e a sala dela estava fechada. Ao Encarregado! O encarregado em Londres é sempre um inglês alto, fino, cabelos grisalhos, de terno e sorriso irônico que, ao saber das duas malucas vindas do Brasil, foi ele mesmo, de chave, abrir as portas. Nem todo mundo gosta de Clarice Cliff.
Começou a fazer sucesso de verdade pintando para umas fábricas inglesas em 1921. Teve a ideia de revolucionar a louça fazendo as pinturas em art déco com cores alegres, alaranjadas, verdes, as flores escorrendo para fora dos bules. Ou pintadas só pela metade, ou qualquer coisa. Era uma artista de verdade. Tudo tão inusitado que suas coleções neste estilo chamavam-se "Bizarre", mas nunca deixaram de vender, e muito, apesar da bizarrice tanto da própria pintura como do formato dos objetos.
Já cheguei à conclusão que, se acontecer um ataque do vírus das louças, pare. Compre um livro sobre o objeto amado. Aquilo vai se tornando um estudo, o período, as cores, o jeito de pintar, as comparações. Não vai ser preciso comprar nada, satisfazemos nossos impulsos primários e, sem sutiã, continuamos tomando "café au lait" nas canecas de sempre.

ninahorta@uol.com.br


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