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ANÁLISE
É de Machado! Uma típica 'bala de estalo'!
VALENTIM FACIOLI
especial para a Folha
Faltando um mês para os 90 anos
da morte do velho Machadão
(com perdão da intimidade!), eis
que temos uma crônica magnífica
recém-exumada da "Gazeta de
Notícias" por Daniela Mantarro
Callipo, que trabalha em Assis,
coincidentemente.
Isso até cheira a sortilégios do
estrambótico bibliômano das
"Memórias Póstumas", em que
fica previsto que, depois de 70
anos de esquecimento, as memórias de Brás Cubas, "exemplar
único", seriam reencontradas
"por acaso, no pardieiro de um
alfarrabista".
Em 1991, Haroldo Maranhão
descobriu o conto "Terpsícore",
que saíra em 1886 também na
"Gazeta de Notícias", e o publicou no jornal "O Globo", do Rio
de Janeiro. Esse conto mereceu
uma linda edição em livro pela
editora Boitempo, de São Paulo,
em 1996, com prefácio de Davi Arrigucci Jr.
A presente crônica, assinada por
Lélio, parece ter mesmo escapado
das pesquisas anteriores, o que
pode ser visto, no retardo de sua
circulação, como um "prêmio"
para os atuais leitores de Machado
de Assis, nestes 90 anos da morte.
É um consolo.
Essa crônica guarda enorme semelhança estrutural com a prática
machadiana nesse gênero jornalístico, em especial com as outras
das "Balas de Estalo" já pacificamente identificadas e republicadas
nas obras de Machado de Assis.
O tom do texto é, sem dúvida, de
fina ironia, mas não só isso, porque chega à sátira amena, mas decidida; de fato, encontra na palavra de um preto velho e, por suposto, analfabeto ("filósofo sem
livros") a "fórmula prática, tangível, segura, sublime, o fundo
dos fundos, a substância das substâncias" para resolver o problema
eleitoral "daquele ano de calamidades", no Império escravocrata.
Parece, contudo, que o mais machadiano dos aspectos estruturais
da crônica são os negaceios e artimanhas do narrador. Aí a coisa
parece inconfundível. O narrador,
evidentemente ficcional, assume
uma postura principal, que é a de
"conselheiro" de mistura com
"médico, sendo também um ilustrado, atento e patriota leitor de
jornal, que procura a "paz pública' e quer evitar a "pancadaria
eleitoral'". E não se esquece de
dialogar com o leitor.
Essa mistura parece formar, em
todo caso, um tipo, nem sempre
muito diferente, de inúmeros outros tipos de narrador/personagem das "Balas de Estalo". Parece também que esse tipo de narrador misturado (ou volúvel, na leitura de Roberto Schwarz), não
sendo nada confiável, se autojustifica ao mesmo tempo que também
se descredencia, na matéria disparatada com que procura o "remédio único e verdadeiro" que oferece aos seus "concidadãos".
Assim, ele recorre a um pequeno
episódio da disputa de fronteira
com a Argentina (que, "se é verdadeiro, ignoro") e dele extrai
uma relação maliciosa entre república e império, bem como, por
outra analogia, entre "penachos e
emolumentos", relativizando tudo para insinuar que o sr. Fulano e
o sr. Sicrano, candidatos, não
guardam entre si nenhuma diferença significativa, pois o eleitor
pode carregar as bandeiras de ambos, "uma na mão, outra no bolso".
Enfim, liberais e conservadores
seriam, de fato, da "mesma igreja", como esclarece "atarantado", mas sibilinamente, o preto
velho.
Essa é um aposição muito conhecida (e tematizada) de Machado de Assis, por exemplo em
"Esaú e Jacó".
Creio que se pode atestar ainda a
autoria machadiana do texto (salvo um drible de gênio) pela linguagem elegante, precisa e pela
sintaxe entre a venaculização e
certo "abrasileiramento" da colocação pronominal, por exemplo.
Sobressai ainda o uso, que acredito raro, do termo "conseguintemente", em lugar de consequentemente, que também comparece
no derradeiro capítulo das "Memórias Póstumas", o celebérrimo
"Das Negativas".
Finalmente, vale assinalar o uso
do gancho jornalístico para prender a atenção do leitor, sendo o remédio prometido só revelado ao
final. E, ainda, que a reforma eleitoral (ou remédio), tematizada no
conto "Sereníssima República",
também mereça outra crônica galhofeira e satírica do mesmo Lélio,
no dia 9 de janeiro, logo depois
das eleições, bem como inúmeras
referências à politicagem cotidiana na maioria das crônicas das
"Balas de Estalo".
Valentim Facioli é professor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP
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