São Paulo, sábado, 22 de agosto de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Gigantes e anões, as viagens de Gulliver

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Rússia e América, os dois colossos que dividiram o mundo durante quase meio século, estão prostrados. A terra dos czares, terra do poder absoluto que, para sobreviver, inventou a melancolia e o desespero, está em frangalhos. Na véspera do caos, a Rússia, sublime e angustiada, mal consegue reencontrar sua voz, sua alma e a sua loucura.
Conduzida por um "mujik" bêbado, Boris (leia-se Baris) Ieltsin, prepotente, medíocre e senil, a pátria de Turgueniev, Gontcharov, Dostoievsky, Tchecov e Tolstoy só consegue produzir símiles um pouco mais sóbrios, porém igualmente possessos e populistas, os velhos "narodniki", eternos aproveitadores da grande ressaca nacional.
A fábrica do "socialismo real", a mais profunda e mais longa experiência de construção de uma sociedade justa, converteu-se numa caricatura dela mesma. O antípoda do capitalismo aderiu ao que de pior existe no capitalismo e, agora sim, está em condições de dominar o mundo e afetar todos os seus recantos. A máfia russa não disputa com o poder, ela é parte do poder, encravada na própria estrutura da esfera pública e da vida privada.
A América (era assim que se chamava quando o resto do continente não existia), refestelada num de seus melhores momentos, próspera, hegemônica, é a matriz de um sistema econômico, político e cultural que deve varar o século. No entanto, está envergonhada, diminuída, enxovalhada. A despeito da represália aos atentados terroristas.
O seu líder, William Jefferson Clinton, um dos mais belos espécimes produzidos em suas linhas de montagem (viril, vitaminado, culto, bem-falante, bem-casado, progressista, politicamente correto, bem-sucedido, saxofonista) foi pego em flagrante de adultério em plena firma. E mentiu. E admitiu que mentiu.
A infração situa-se na esfera íntima e conjugal. Esse não é o problema da América. O problema da América é o tamanho do espelho que ela montou. Amplia de tal maneira o escândalo que nele todos acabam refletidos.
A crise não está apenas no lar dos Clinton. A crise está nos subprodutos do modelo americano, mantido mais ou menos impecável ao longo dos últimos 222 anos. O rigoroso equilíbrio entre os poderes produziu esta excrescência legal representada pelo grande inquisidor Kenneth Starr, virtual herdeiro das caçadoras de bruxas de Salem, êmulo de Joe McCarthy, farisaico, onipotente e megalomaníaco.
A liberdade de expressão, representada pela Primeira Emenda, permitiu que a imprensa chafurdasse numa das coberturas mais viciosas da sua história. O sagrado direito de informar permitiu que se publicasse, sem menção da fonte, todos os detalhes de uma investigação sigilosa que o próprio Starr, ardilosamente, deixava vazar para uma mídia que babava de prazer.
A livre iniciativa, o showbiz, a indústria do escândalo completaram o quadro aviltante. Atrás do novelo de confissões gravadas secretamente estão os agentes literários estimulando as inconfidências em troca de contratos de milhões de dólares.
Linda Tripp, apesar do nome -um vômito da natureza-, será a autora de um best-seller quando revelar o teor das fitas de suas conversas com sua ex-amiga Monica Lewinsky, por sua vez o produto final da cultura libertária da Califórnia.
Rússia e América nos conduzem a uma reflexão sobre a verdadeira dimensão dos gigantes (do grego, gigas + antos, filhos de Gê, Terra, e dos céus, Urano). Segundo a mitologia, esses seres descomunais tentaram galgar o Olimpo, mas foram aniquilados por Zeus. Enterrados embaixo das montanhas, despertam ocasionalmente por meio de terremotos.
Gigantes não são infalíveis. Na Bíblia, os israelitas que foram espiar as maravilhas da Canaã encontraram homens enormes, porém, incapazes de impedir que lá se fixassem. Golias foi batido pelo pequeno e lírico Davi. No imaginário e no inconsciente coletivo de todos os povos existem gigantes representando a força natural, telúrica.
Assim, somos remetidos a Gulliver, que era exatamente do nosso tamanho. Invenção de Jonathan Swift (1667-1743), contemporâneo de Daniel Defoe (que já perambulou por esses textos) e, como esse, andou muito envolvido com política, a natureza do homem, as dificuldades para o seu governo e as soluções paradisíacas.
A mais celebrada criação de Swift é o cirurgião de bordo Samuel Gulliver, narrador das fantásticas viagens, personagem de outro personagem, o editor Richard Sympson (projeção do próprio Swift, assim como Robinson Crusóe foi de Defoe).
A primeira viagem de Samuel Gulliver é a mais famosa, não há criança que a desconheça ou adulto que dela tenha se esquecido. Começa com o seu naufrágio e cativeiro em Lilliput, terra de anões.
Depois de aprender o idioma, Gulliver é libertado, torna-se conselheiro do rei, ajuda-o nas empreitadas bélicas, mas a inveja e as brigas políticas obrigam-no a fugir. Ocasião em que faz irônicas reflexões sobre o poder político. Tão original é essa experiência literária que deixou marcas nas principais línguas do mundo -o adjetivo liliputiano, sinônimo de minúsculo, miniatura.
Na segunda viagem, Gulliver é abandonado em outra estranha terra, Brobdingnag, onde todos são gigantes, inclusive flora, fauna e, naturalmente, as mulheres. Sobre essas, Gulliver-Sympson descarrega sua misoginia por conta das complicações amorosas de Swift. Escapa com a ajuda de uma águia.
Na terceira jornada, Gulliver chega a Laputa, ilha aérea, cujos habitantes, embora de aparência comum, são extremamente bizarros: esquecem o que acabaram de fazer, comem alimentos com formas geométricas, falam uma língua baseada na matemática e as idéias são expressas em linhas, figuras e notas musicais. É a oportunidade para Swift criticar o apego ao cientificismo e o falso racionalismo.
Há uma quarta viagem, à Houyhnhnms, terra onde os cavalos são sábios e domesticaram os homens (que andam de quatro, irracionais, cruéis, incapazes de expressar-se, chamados Yahous).
Gulliver convive agradavelmente com os equinos até que se cansa e volta à pátria. E descobre que é um estrangeiro junto aos seus. Cada viagem o distanciou dos semelhantes, já não enxerga o que os outros enxergam. Em cada lugar aprendia novo idioma, sempre era o outro. Cada ilha, uma decepção.
"Jonathan Swift", de Victória Glendinning (Hutschinson), a mais nova biografia do grande satirista nascido na Irlanda, foi lançada esta semana na Inglaterra. Nela, conta-se que o inventor de Gulliver morreu só, internado como demente, esmagado pelo relativismo. Gigante e anão.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.