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ANÁLISE
Artista "bricoleur", diretor une ultramoderno e caipira
MÔNICA RODRIGUES DA COSTA
EDITORA DA FOLHINHA
O musical "Gota d'Água" levou tempo para ser construído e foi feito com insistência e
nos mínimos detalhes, como a repetição das rimas perfeitas do
poema homônimo, de Chico
Buarque e Paulo Pontes (1975),
encadeadas em decassílabos e alexandrinos de sintaxe flexível que
narram a tragédia heróica de Jasão e Medéia, ambientada na vila
do Meio-Dia da periferia pobre de
algum lugar do Brasil.
Nos 30 dias que esta jornalista
acompanhou o elenco, dirigido
por Gabriel Villela e que está em
cartaz com o espetáculo a partir
de hoje, foram pelo menos três
horas diárias de elaboração do
corpo grego do ator (Ricardo Rizzo é autor da coreografia), além
de jornadas ainda maiores de canto, percussão e treino do texto.
O resultado são passos geométricos que seguem o ritmo monotemático, de timbre grave, de nove tambores e apenas um violão.
Esses instrumentos põem em relevo as 18 vozes dos atores interpretando os versos e as composições da peça.
A interpretação calculada substitui a perfeição técnica de um
concerto musical erudito aproveitando as outras habilidades dos
atores, mas sem deixar de tomar
distância do estilo vulgar da MPB.
"Em "Flor da Idade", as mulheres
seguem o popular, e os homens
tomam distância, fazendo um
contraste entre o [coro" feminino
e o masculino" (observou Babaya), para representar o embate de
gêneros da trama grega.
Para Fernando Muzzi, co-autor
da trilha sonora junto com Babaya (Maria Amália Moraes) e Ernani Maletta, o ritmo, "marcado como os passos dos soldados, imita
a característica repetitiva da coreografia".
Jogos especulares assim multiplicam-se, desde a música até as
intervenções de "Medeamaterial", de Heiner Müller, também
releitura de "Medéia" de Eurípedes, que Villela acrescentou à
"Gota d'Água".
"O desfazimento da trilha do
Chico significa endurecer ou quebrar uma música que é melodiosa", disse Muzzi.
O espetáculo foi concebido por
contrastes. É ultramoderno e, ao
mesmo tempo, caipira, porque
Villela, artista "bricoleur", toma
emprestadas imagens de várias
naturezas para compor a alegoria
da realidade nacional do texto de
Buarque e Pontes.
O enredo mostra que, depois de
dez anos de casamento, Jasão
abandona Joana (Medéia) por
uma mulher mais jovem e assume
o poder na vila operária onde vivem. Ela é filha de Creonte, bicheiro líder da vila, ou rei de Corinto, terra que abrigou o casal
grego depois que Medéia assassinou o irmão para ajudar o amante
em troca da fidelidade de Jasão.
Na pele dos atores, o diretor
costura o "jersey ordinário à seda
inglesa" (comenta o co-autor do
figurino Leopoldo Pacheco), a
máscara do teatro medieval e os
anjos das igrejas barrocas ao couro punk sadomasoquista usados
no figurino. Ele transfere o sentido da decadência visual ao mito
da corrupção brasileira, que viola
os direitos de cidadania com contas bancárias em paraísos fiscais
oriundas do desvio de dinheiro
público, representados por
Creonte.
Para arrematar o paradoxo, há
um deboche cênico, em co-autoria com Serroni, em relação à autoridade do governo, na cama e
na macumba colocadas na rampa
do Palácio e no acabamento circense de suas colunas, efeito provocado pela figura da ironia, irmã
da antítese, nas imagens presentes. Essas figuras permeiam o trabalho do grupo e produzem uma
versão contemporânea com distanciamento épico.
A caracterização física e psicológica dos personagens mudou
muitas vezes. Pelo método de deslocamento do diretor, a toga grega que o coro veste hoje tinha sido
antes o xador das muçulmanas,
em referência "a uma cultura que
vai acabar", comentou Villela
num ensaio desta semana, aproveitando a coincidência da tragédia de 11 de setembro em Nova
York.
Ela vem somar-se à metáfora de
um país em dissolução, pós-utópico, descrito na peça.
A desconstrução do texto de Eurípedes e de "Gota d'Água" colabora para a representação da destruição do homem social, reduzido a sua condição de animal,
acuado face a um mundo contra o
qual não tem poder de se rebelar.
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