São Paulo, sábado, 22 de setembro de 2001

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ANÁLISE

Artista "bricoleur", diretor une ultramoderno e caipira

MÔNICA RODRIGUES DA COSTA
EDITORA DA FOLHINHA

O musical "Gota d'Água" levou tempo para ser construído e foi feito com insistência e nos mínimos detalhes, como a repetição das rimas perfeitas do poema homônimo, de Chico Buarque e Paulo Pontes (1975), encadeadas em decassílabos e alexandrinos de sintaxe flexível que narram a tragédia heróica de Jasão e Medéia, ambientada na vila do Meio-Dia da periferia pobre de algum lugar do Brasil.
Nos 30 dias que esta jornalista acompanhou o elenco, dirigido por Gabriel Villela e que está em cartaz com o espetáculo a partir de hoje, foram pelo menos três horas diárias de elaboração do corpo grego do ator (Ricardo Rizzo é autor da coreografia), além de jornadas ainda maiores de canto, percussão e treino do texto.
O resultado são passos geométricos que seguem o ritmo monotemático, de timbre grave, de nove tambores e apenas um violão. Esses instrumentos põem em relevo as 18 vozes dos atores interpretando os versos e as composições da peça.
A interpretação calculada substitui a perfeição técnica de um concerto musical erudito aproveitando as outras habilidades dos atores, mas sem deixar de tomar distância do estilo vulgar da MPB. "Em "Flor da Idade", as mulheres seguem o popular, e os homens tomam distância, fazendo um contraste entre o [coro" feminino e o masculino" (observou Babaya), para representar o embate de gêneros da trama grega.
Para Fernando Muzzi, co-autor da trilha sonora junto com Babaya (Maria Amália Moraes) e Ernani Maletta, o ritmo, "marcado como os passos dos soldados, imita a característica repetitiva da coreografia".
Jogos especulares assim multiplicam-se, desde a música até as intervenções de "Medeamaterial", de Heiner Müller, também releitura de "Medéia" de Eurípedes, que Villela acrescentou à "Gota d'Água".
"O desfazimento da trilha do Chico significa endurecer ou quebrar uma música que é melodiosa", disse Muzzi.
O espetáculo foi concebido por contrastes. É ultramoderno e, ao mesmo tempo, caipira, porque Villela, artista "bricoleur", toma emprestadas imagens de várias naturezas para compor a alegoria da realidade nacional do texto de Buarque e Pontes.
O enredo mostra que, depois de dez anos de casamento, Jasão abandona Joana (Medéia) por uma mulher mais jovem e assume o poder na vila operária onde vivem. Ela é filha de Creonte, bicheiro líder da vila, ou rei de Corinto, terra que abrigou o casal grego depois que Medéia assassinou o irmão para ajudar o amante em troca da fidelidade de Jasão.
Na pele dos atores, o diretor costura o "jersey ordinário à seda inglesa" (comenta o co-autor do figurino Leopoldo Pacheco), a máscara do teatro medieval e os anjos das igrejas barrocas ao couro punk sadomasoquista usados no figurino. Ele transfere o sentido da decadência visual ao mito da corrupção brasileira, que viola os direitos de cidadania com contas bancárias em paraísos fiscais oriundas do desvio de dinheiro público, representados por Creonte.
Para arrematar o paradoxo, há um deboche cênico, em co-autoria com Serroni, em relação à autoridade do governo, na cama e na macumba colocadas na rampa do Palácio e no acabamento circense de suas colunas, efeito provocado pela figura da ironia, irmã da antítese, nas imagens presentes. Essas figuras permeiam o trabalho do grupo e produzem uma versão contemporânea com distanciamento épico.
A caracterização física e psicológica dos personagens mudou muitas vezes. Pelo método de deslocamento do diretor, a toga grega que o coro veste hoje tinha sido antes o xador das muçulmanas, em referência "a uma cultura que vai acabar", comentou Villela num ensaio desta semana, aproveitando a coincidência da tragédia de 11 de setembro em Nova York.
Ela vem somar-se à metáfora de um país em dissolução, pós-utópico, descrito na peça.
A desconstrução do texto de Eurípedes e de "Gota d'Água" colabora para a representação da destruição do homem social, reduzido a sua condição de animal, acuado face a um mundo contra o qual não tem poder de se rebelar.



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