JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Que o título não engane: não se trata do enésimo documentário sobre uma favela carioca. Morro da Conceição é o nome de um bairro antigo de classe média baixa encravado no centro do Rio de Janeiro.
É a memória desse bairro que a cineasta Cristiana Grumbach procura capturar com sua câmera e seu microfone. São duas as vias dessa procura: os longos depoimentos de velhos moradores e o registro do espaço mais ou menos preservado de seus becos e ladeiras, com sobrados do tempo do Império e calçamento de paralelepípedo. Esse bairro singular, formado basicamente por imigrantes portugueses que vieram trabalhar no comércio e no porto, ilustra por contraste as transformações vividas pelo Rio nos últimos cem anos.
Em meio ao caos urbano moderno, é uma espécie de ilha em que o tempo transcorre em outra velocidade, quase em outra dimensão. Em seus momentos mais felizes, o filme de Grumbach capta justamente essa outra temporalidade. Isso ocorre, por exemplo, quando os idosos entrevistados, enlevados pelas lembranças, parecem nos levar ao passado, ou melhor, tornar esse passado presente diante dos nossos olhos.
A construção do prédio do jornal "A Noite", sua depredação durante a Revolução de 30, o aterro que afastou o mar para longe, a chegada dos "nortistas", as festas de rua, os rituais religiosos, os partos em casa, as benzedeiras -tudo isso ganha vida e nitidez na voz alquebrada dos personagens.
Há um momento de pura epifania: uma senhora, lucidíssima em seus 94 anos, fica alguns instantes calada e imóvel, quase como se estivesse em transe. Em seguida, revela que estava pensando na mãe. O que a imagem revela, porém, é mais: ela estava de fato com a mãe em outro lugar, um lugar forjado pela memória. A beleza de "Morro da Conceição" está na atenção a esses silêncios, a esses vazios, a mostrar que não existe nada mais vivo que os chamados tempos mortos.

MORRO DA CONCEIÇÃO    
Direção: Cristiana Grumbach
Produção: Brasil, 2006
Onde: estréia hoje no Cine Bombril