São Paulo, sábado, 22 de setembro de 2007

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Crítica/ artes plásticas

Alberto Martins faz escritos pictóricos

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Os primeiros escritos eram gravuras. Gravavam-se as palavras com um cravo numa pedra. Daí, certamente, a semelhança sonora entre as palavras, todas derivadas da mesma origem: gravar, grafar, cravar.
O próprio som das consoantes designa o gesto de perfuração, essencial à consecução dessas práticas. Como é necessário penetrar a pedra, a madeira, o metal, para poder executar uma gravura, como a figura ou imagem se cria não só de fora para dentro, mas como que de dentro para fora, a partir de uma espécie de sangramento do material perfurado, a gravura, além da própria escrita, também guarda reminiscências com a poesia: palavras opacas, como se tivessem perspectiva e tridimensionalidade.
As gravuras de Alberto Martins, expostas na Estação Pinacoteca, dentro da exposição "Em Trânsito", são escritos pictóricos de um gravurista que é também um escritor.
Imagens gravadas de navios, cais, caixas, guindastes, todas elas carregadas de um peso, uma sujeira e densidade que não se esgotam nas formas expostas, mas que remetem à força do gesto incisivo da gravação e à massa de sentidos e sensações contidas no universo marítimo e portuário.
É o sentido do tempo, da memória, da passagem e, principalmente, como diz Guilherme Wisnik no belíssimo texto do catálogo da exposição, a sensação de iminência. Um navio está prestes a chegar; caixas estão quase desabando; uma caixa quase toca o chão; a forma é quase figurativa ou a figura é quase forma. Estamos entre a gravura e a poesia, num espaço que lembra muito alguns trechos do último livro de Alberto Martins, "A História dos Ossos" (editora 34): "Desde então os homens passaram a guardar suas palavras nas pedras (...) Desde que o som se tornou pedra brotaram os hieróglifos, cunharam-se as moedas. (...) As palavras não passam de cascas de coisas que eram que foram que vieram se esfarelando na ladeira das eras até tornarem-se o que são -esta fala: gargarejo, cacareco."
Os restos, pedaços, cascas de coisas que Martins expõe em suas gravuras, são como os restos de sentidos que nos sobram, metonímias de um mundo em trânsito. Mas deve ser a partir da colagem desses restos que nós poderemos cunhar, quem sabe, uma nova linguagem.


EM TRÂNSITO
Quando: ter. a dom., das 10h às 18h
Onde: Estação Pinacoteca (lgo. Gen. Osório, 66, tel. 0/xx/11/3337-0185)
Quanto: R$ 4 e grátis aos sábados
Avaliação: ótimo



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