|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/psicanálise
Publicação sobre Jacques Lacan consegue ser densa e precisa
JOEL BIRMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
O livro sobre Lacan, escrito por Vladimir Safatle, é surpreendente.
Não obstante se inserir numa
série editorial visando amplo
público -como pretende ser
uma coleção como "Folha Explica"-, tem grande densidade
teórica e precisão conceitual.
Além disso, o livro é escrito
numa linguagem clara e num
português escorreito, onde tudo é devidamente explicitado
para os leigos, para apagar definitivamente do texto qualquer
marca de retórica especializada
e técnica, que destinaria inevitavelmente a obra para os já iniciados no tema.
Assim, o autor percorre a
obra de Lacan do início (1932)
ao fim de seu percurso intelectual (1981), em quatro capítulos
bem concatenados, incluindo
ainda uma conclusão, uma cronologia e uma bibliografia básica. Incluem-se nessa não apenas alguns poucos títulos introdutórios, mas também a referência a sites sobre obra de Lacan e a teoria lacaniana. Ao longo do texto, as referências bibliográficas e comentários breves aparecem em notas de pé de
página, para orientar devidamente o leitor.
Porém, se o livro é conceitualmente preciso, isso se deve
à escolha do fio de prumo para
delinear o seu percurso teórico.
No que concerne a isso, aliás, a
obra é também surpreendente.
A escolha se centrou na problemática da "clínica", que teria
norteado a produção dos diferentes discursos teóricos em
Lacan. Pode-se afirmar que essa escolha é bastante original,
pois em geral as exposições sobre a obra se centram seja na
ênfase de certos conceitos fundamentais (Fink, Lacone-Laborthe, Nancy, Miller, Milner,
Olgivie), seja na sua biografia
(Roudinesco). Portanto, Safatle
destacou a clínica como problemática crucial, delineando a
produção de conceitos, que pudessem então solucionar e operacionalizar de maneira coerente as questões colocadas.
No entanto, se a escolha do
autor foi essa, isso se deve à
configuração atual do campo de
cuidados na contemporaneidade. Assim, acossada que é pela
"medicalização" ostensiva do
"mal-estar" promovida pelas
neurociências, a psicanálise é
denegrida e considerada superada nos seus propósitos de
cuidados. Para se contrapor a
isso é preciso dizer que desde o
início do seu percurso teórico
Lacan empreendeu uma crítica
sistemática da medicalização e
da psicologização da dor -como Freud também, aliás.
Aquele constituiu, com efeito, um programa "interdisciplinar", pelo qual uma interpretação psicológica das perturbações do espírito foi conjugada à
leituras sociológica e antropológica, para se contrapor a qualquer redução organicista e neurofuncional na explicação de
tais perturbações. Criticando,
assim, qualquer materialismo
naturalista, Lacan se aproximaria mais do materialismo
dialético. Em decorrência disso, a problemática da alienação
foi inscrita no fundamento da
sua leitura da clínica.
Seria pela ênfase colocada na
alienação, constitutiva que seria essa do eu e da personalidade pelos processos de identificação (Freud), que a problemática do sujeito foi enunciada
desde o início do percurso de
Lacan. Daí a ênfase de Safatle
de iniciar a sua leitura pelo começo da obra desse, para ressaltar a fidelidade teórica de
Lacan à sua problemática, não
obstante as transformações
conceituais que enunciou.
Assim, se inicialmente o sujeito (Je) se opunha ao eu
(moi), isso indicaria a irredutibilidade daquele à esse, por um
lado, pois seria a possibilidade
de ruptura com a experiência
de alienação condensada no eu,
pelo outro. Seria ainda por esse
viés que a passagem do registro
do imaginário para o do simbólico se justificaria teoricamente, pois, nesse contexto, Lacan
conferiu ao "desejo puro" a posição crucial de promover agora as rupturas com aquilo que
fosse alienante. Finalmente, na
ênfase atribuída posteriormente ao registro do real, o privilégio da ruptura foi conferida ao
objeto "a" e à "travessia do fantasma".
Portanto, no discurso psicanalítico concebido por Lacan, o
que estaria sempre em pauta
seria a constituição de um operador que pudesse empreender
a ruptura com a alienação, engendrada que seria essa na modernidade. Paradoxalmente,
seria a dissolução das coordenadas dessa o que possibilitaria
a ação efetiva do operador da
ruptura. A eficácia do ato psicanalítico estaria aqui.
Por isso mesmo, a psicanálise
não seria uma prática terapêutica no sentido estrito, pois não
poderia ser normativa, mas
uma crítica sistemática e insistente da medicalização do mal-estar, já que as modalidades de
adaptação promovidas pela
modernidade seriam efetivamente alienantes.
JOEL BIRMAN é psicanalista, professor do Instituto de Psicologia da UFRJ e do Instituto de Medicina Social da Uerj
LACAN
Autor: Vladimir Safatle
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 17,90 (96 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Trechos Próximo Texto: Televisão: "High School 3" encerra história, afirma diretor Índice
|