São Paulo, sábado, 22 de setembro de 2007

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Crítica/psicanálise

Publicação sobre Jacques Lacan consegue ser densa e precisa

JOEL BIRMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro sobre Lacan, escrito por Vladimir Safatle, é surpreendente. Não obstante se inserir numa série editorial visando amplo público -como pretende ser uma coleção como "Folha Explica"-, tem grande densidade teórica e precisão conceitual.
Além disso, o livro é escrito numa linguagem clara e num português escorreito, onde tudo é devidamente explicitado para os leigos, para apagar definitivamente do texto qualquer marca de retórica especializada e técnica, que destinaria inevitavelmente a obra para os já iniciados no tema.
Assim, o autor percorre a obra de Lacan do início (1932) ao fim de seu percurso intelectual (1981), em quatro capítulos bem concatenados, incluindo ainda uma conclusão, uma cronologia e uma bibliografia básica. Incluem-se nessa não apenas alguns poucos títulos introdutórios, mas também a referência a sites sobre obra de Lacan e a teoria lacaniana. Ao longo do texto, as referências bibliográficas e comentários breves aparecem em notas de pé de página, para orientar devidamente o leitor.
Porém, se o livro é conceitualmente preciso, isso se deve à escolha do fio de prumo para delinear o seu percurso teórico. No que concerne a isso, aliás, a obra é também surpreendente.
A escolha se centrou na problemática da "clínica", que teria norteado a produção dos diferentes discursos teóricos em Lacan. Pode-se afirmar que essa escolha é bastante original, pois em geral as exposições sobre a obra se centram seja na ênfase de certos conceitos fundamentais (Fink, Lacone-Laborthe, Nancy, Miller, Milner, Olgivie), seja na sua biografia (Roudinesco). Portanto, Safatle destacou a clínica como problemática crucial, delineando a produção de conceitos, que pudessem então solucionar e operacionalizar de maneira coerente as questões colocadas.
No entanto, se a escolha do autor foi essa, isso se deve à configuração atual do campo de cuidados na contemporaneidade. Assim, acossada que é pela "medicalização" ostensiva do "mal-estar" promovida pelas neurociências, a psicanálise é denegrida e considerada superada nos seus propósitos de cuidados. Para se contrapor a isso é preciso dizer que desde o início do seu percurso teórico Lacan empreendeu uma crítica sistemática da medicalização e da psicologização da dor -como Freud também, aliás.
Aquele constituiu, com efeito, um programa "interdisciplinar", pelo qual uma interpretação psicológica das perturbações do espírito foi conjugada à leituras sociológica e antropológica, para se contrapor a qualquer redução organicista e neurofuncional na explicação de tais perturbações. Criticando, assim, qualquer materialismo naturalista, Lacan se aproximaria mais do materialismo dialético. Em decorrência disso, a problemática da alienação foi inscrita no fundamento da sua leitura da clínica.
Seria pela ênfase colocada na alienação, constitutiva que seria essa do eu e da personalidade pelos processos de identificação (Freud), que a problemática do sujeito foi enunciada desde o início do percurso de Lacan. Daí a ênfase de Safatle de iniciar a sua leitura pelo começo da obra desse, para ressaltar a fidelidade teórica de Lacan à sua problemática, não obstante as transformações conceituais que enunciou.
Assim, se inicialmente o sujeito (Je) se opunha ao eu (moi), isso indicaria a irredutibilidade daquele à esse, por um lado, pois seria a possibilidade de ruptura com a experiência de alienação condensada no eu, pelo outro. Seria ainda por esse viés que a passagem do registro do imaginário para o do simbólico se justificaria teoricamente, pois, nesse contexto, Lacan conferiu ao "desejo puro" a posição crucial de promover agora as rupturas com aquilo que fosse alienante. Finalmente, na ênfase atribuída posteriormente ao registro do real, o privilégio da ruptura foi conferida ao objeto "a" e à "travessia do fantasma".
Portanto, no discurso psicanalítico concebido por Lacan, o que estaria sempre em pauta seria a constituição de um operador que pudesse empreender a ruptura com a alienação, engendrada que seria essa na modernidade. Paradoxalmente, seria a dissolução das coordenadas dessa o que possibilitaria a ação efetiva do operador da ruptura. A eficácia do ato psicanalítico estaria aqui.
Por isso mesmo, a psicanálise não seria uma prática terapêutica no sentido estrito, pois não poderia ser normativa, mas uma crítica sistemática e insistente da medicalização do mal-estar, já que as modalidades de adaptação promovidas pela modernidade seriam efetivamente alienantes.


JOEL BIRMAN é psicanalista, professor do Instituto de Psicologia da UFRJ e do Instituto de Medicina Social da Uerj


LACAN
Autor: Vladimir Safatle
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 17,90 (96 págs.)
Avaliação: ótimo



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