São Paulo, Sexta-feira, 22 de Outubro de 1999
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MÚSICA IRA!
Isso é amor, só. E quem precisa de mais?

da Reportagem Local


É coisa rara a coexistência, no mesmo espaço, de integridade, senso ético, talento, competência, fúria. O Ira! sempre primou pelo privilégio; agora, sob permissão, resolveu atirar isso no rosto de quem puder (ou quiser) ouvir. "Isso É Amor" é, quase todo, um manifesto (além de um lancinante disco de amor). Até há fissuras, mas elas são acomodáveis.
"Sentado à Beira do Caminho" (afinal a menos feliz das versões) traz ao projeto ético o mais acomodado de todos os artistas brasileiros, Roberto Carlos, mas, mais que dele, é do parceiro Erasmo Carlos, em sua própria carreira solo um primor de fidelidade à música e a si próprio.
Chico Buarque, também, é da nata do mainstream. Mas "Jorge Maravilha" -em releitura sensacional, do mais rasgado rock-samba (e não samba-rock)- se safa por aquela aura de resistência, do artista que por volta de 1974 tinha de se esconder sob pseudônimo para escapar à truculência do regime, e o fazia ironizando o presidente general e sua filha ("você não gosta de mim, mas sua filha gosta").
Legião Urbana -revista em "Teorema", simpática e só-, enfim, pecou, e não pouco, pelo messianismo. Mas, OK, Renato Russo teve lá sua missão no campo sexual e blablablá...
De resto? É tudo nobre de doer.
Com habilidade inaudita de driblar chavões, o Ira! fez um disco que não terá o selo mórbido dos "malditos" -mais que de "malditos", é um apanhado de músicas de gente importante, talentosa, que não se segurou no esquema podre porque não se adaptou.
Ritchie é, aí, a grande figura. Refazer "A Vida Tem Dessas Coisas" -e a releitura é pior que o original!, que fofo- é um comovente grito de coragem. Era mais que hora de a seriedade de Ritchie ser reconhecida, afinal aconteceu.
Mais ou menos isso pode ser dito, em terreno estritamente musical, de quase todo mundo -Tim Maia, Erasmo Carlos, Lobão, Júlio Barroso, Lô Borges, Wander Wildner, o próprio Ira!, Edgard Scandurra solo.
Num nível que poderia parecer caricatural, o mesmo acontece com Dalto e Ronnie Von. Em "Flashback", do primeiro, ouve-se de Nasi: "Eu mereço ganhar o Prêmio Nobel da Paz". Gênio.
Lá no final, na avassaladora "Minha Gente Amiga", Santana solto no gramado, portam a voz de Ronnie Von: "Sou um homem, um homem comum/ Atrás do dinheiro, atrás do amor". Não é isso que todo mundo quer? Gênio.
Talvez falte falar do Ira!, do Ira!.
Dos conflitos divertidos entre seus membros e da tensão/polarização criativa entre duas das figuras-chave do rock nacional -Nasi e Edgard Scandurra- é que toda a química se faz.
Nasi volta altivo, autêntico líder de banda, embora sua voz -é praxe, em sua geração- esteja mais maltratada, precisando ser polida de novo.
A guitarra de Edgard, por sua vez, estraçalha, criva de delícia especialmente "Um Girassol da Cor do Seu Cabelo" (bem dividida com Samuel Rosa), de Lô e Márcio Borges, "O Que Me Importa", de Cury, que Tim Maia lançou em seu terceiro disco, de 72, e a catártica alienígena "Alegria de Viver" (a única que ele canta, com simplicidade).
Algo mais? Ah, sim. "Telefone", da Gang 90, sombria, declamada, com Fernanda Takai choramingando "oh, meu amor, isso é amor", é tudo, é daquelas coisas inacreditáveis que uma boa banda consegue atingir uma vez a cada 76 anos. Falando simples e diretamente? Isso é amor, só. Quem precisa de mais?
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)


Avaliação:     

Disco: Isso É Amor Grupo: Ira! Lançamento: Deckdisc/Abril Music Quanto: R$ 18, em média

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