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CARLOS HEITOR CONY
O triste fim de Lima Barreto
É inevitável a comparação entre
Machado de Assis e Lima Barreto.
Dois cariocas, descendentes de escravos, mestiços, pinçaram, na
mesma cidade e quase ao mesmo
tempo, a paisagem, os personagens e os temas de seus romances.
Se as semelhanças são grandes, as
diferenças são igualmente profundas.
Autodidata, Machado percorreu um caminho ascendente. Dos
ofícios humildes exercidos na juventude e na mocidade, alçou-se
cultural e socialmente. Não criou
apenas uma obra, mas criou-se a
si próprio. Já foi dito que o Machado da maturidade, com aquele pincenê hierático, o cavanhaque grisalho, a efígie de selo postal, teria sido a sua maior criação.
Lima percorreu caminho inverso. Teve boa escolaridade, cursou
a Politécnica, embora órfão de
mãe desde a infância, teve o apoio
do pai, que era tipógrafo conceituado, até bem pouco as gráficas
usavam um manual francês traduzido por João Henriques Lima
Barreto, pai do futuro romancista.
Era afilhado de Afonso Celso,
visconde de Ouro Preto, que chefiou o último gabinete da Monarquia. (Diga-se de passagem que
Lima Barreto nada ficou devendo
ao padrinho, a não ser a humilhação de um dia, equivocadamente,
ter dele recebido uma esmola de
10 mil réis.)
Enquanto Machado subia, inclusive na elaboração de seus romances, começando mal e só chegando ao estágio de gênio aos 40
anos, Lima começou com força
maior, atingiu sua melhor fase
entre os 20 e 30 anos, quando deixou escritos (mas não de todo publicados) seus melhores romances
e contos, principalmente os dois
em que se coloca no mesmo pé de
Machado ou até mesmo acima:
""A Nova Califórnia" e ""O Homem
que Sabia Javanês".
Machado de Assis e Lima Barreto, ao morrerem, receberam um
tipo estranho de homenagem.
Aos 41 anos, consumido pelo parati e pela miséria, com o pai louco no quarto ao lado, ele morreu
abraçado a uma revista e teve um
enterro humilde, acompanhado
por bêbados como ele, vagabundos de subúrbio, cheirando a cachaça, os pés descalços. Quis ser
enterrado em Botafogo -que ele
detestava e criticava. Pouco mais
de dez pessoas assistiram a seu sepultamento, entre eles, Félix Pacheco, Olegário e José Mariano
-sendo que este pagou as despesas. Nenhuma repercussão nos
jornais.
Machado saiu da Academia
que ele fundara com Lúcio Mendonça, teve discurso de Ruy Barbosa, que o substituiu na presidência da casa que teria o nome
dele. Apesar disso, como dois artistas que eram, receberam ambos
a única homenagem que conta, a
única que realmente eleva e consola.
Na agonia de Machado, um jovem desconhecido de 15 anos entrou em seu quarto, ajoelhou-se e
beijou-lhe a mão. Soube-se depois
o nome desse jovem, que se tornou
crítico literário e um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro: Astrojildo Pereira.
Com Lima Barreto a homenagem foi diferente. Chovia em Todos os Santos. O velório na sala
era interrompido pelo barulho da
chuva e, de quando em quando,
pelos gritos do pai, que, no quarto
ao lado, louco e moribundo, morreria horas depois. Em volta do
caixão de terceira, os irmãos e a
gente modesta do subúrbio, que
Lima conhecia dos botequins e
das ruas enlameadas e tristes.
De repente, um homem de seus
50 anos, cuja roupa e cujos modos
revelavam que viera de longe,
aproximou-se da mesa onde haviam colocado o caixão. Ninguém
o conhecia, ninguém procurou saber quem era. Em silêncio, ele descobriu o rosto de Lima Barreto,
contemplou-o, curvou-se e beijou-lhe a testa.
Saiu como entrara: em silêncio,
sem cumprimentar ninguém.
Durante algum tempo, suspeitou-se que esse homem poderia
ter sido Monteiro Lobato. Afinal,
o autor de ""Urupês" fora responsável por um fato que parece único na história da literatura universal. Dirigindo a ""Revista Brasil'", berço da futura e poderosa
Companhia Editora Nacional,
Lobato se oferecera para editar
um dos livros de Lima -o único
que não seria de alguma forma
custeado pelo próprio autor.
Somente um louco, como Lobato, mandaria um contrato de edição a um escritor também louco,
que naquela ocasião estava internado no Hospício da Praia Vermelha. Para Lobato, como para
Agripino Grieco e Jackson de Figueiredo, Lima era o maior romancista brasileiro -e pouco a
pouco são muitos os que assim
pensam, embora reconhecendo
em Machado o maior escritor
brasileiro de todos os tempos.
O triste fim de Lima Barreto ficou mais triste com o beijo de um
desconhecido que nem a história
nem a família ficaram sabendo
quem era. Num registro de seu
diário íntimo, Lima desabafara:
""Gosto da morte porque ela nos
sagra". O afilhado de Nossa Senhora da Glória -ele sempre invocava essa condição- morreu
sem glória. Pouco a pouco, contudo, em torno de seu nome e de sua
obra, vão se aproximando aqueles
que, em silêncio, se curvam diante
de sua dilacerada herança.
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