São Paulo, Sexta-feira, 22 de Outubro de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
O triste fim de Lima Barreto

É inevitável a comparação entre Machado de Assis e Lima Barreto. Dois cariocas, descendentes de escravos, mestiços, pinçaram, na mesma cidade e quase ao mesmo tempo, a paisagem, os personagens e os temas de seus romances. Se as semelhanças são grandes, as diferenças são igualmente profundas.
Autodidata, Machado percorreu um caminho ascendente. Dos ofícios humildes exercidos na juventude e na mocidade, alçou-se cultural e socialmente. Não criou apenas uma obra, mas criou-se a si próprio. Já foi dito que o Machado da maturidade, com aquele pincenê hierático, o cavanhaque grisalho, a efígie de selo postal, teria sido a sua maior criação.
Lima percorreu caminho inverso. Teve boa escolaridade, cursou a Politécnica, embora órfão de mãe desde a infância, teve o apoio do pai, que era tipógrafo conceituado, até bem pouco as gráficas usavam um manual francês traduzido por João Henriques Lima Barreto, pai do futuro romancista.
Era afilhado de Afonso Celso, visconde de Ouro Preto, que chefiou o último gabinete da Monarquia. (Diga-se de passagem que Lima Barreto nada ficou devendo ao padrinho, a não ser a humilhação de um dia, equivocadamente, ter dele recebido uma esmola de 10 mil réis.)
Enquanto Machado subia, inclusive na elaboração de seus romances, começando mal e só chegando ao estágio de gênio aos 40 anos, Lima começou com força maior, atingiu sua melhor fase entre os 20 e 30 anos, quando deixou escritos (mas não de todo publicados) seus melhores romances e contos, principalmente os dois em que se coloca no mesmo pé de Machado ou até mesmo acima: ""A Nova Califórnia" e ""O Homem que Sabia Javanês".
Machado de Assis e Lima Barreto, ao morrerem, receberam um tipo estranho de homenagem.
Aos 41 anos, consumido pelo parati e pela miséria, com o pai louco no quarto ao lado, ele morreu abraçado a uma revista e teve um enterro humilde, acompanhado por bêbados como ele, vagabundos de subúrbio, cheirando a cachaça, os pés descalços. Quis ser enterrado em Botafogo -que ele detestava e criticava. Pouco mais de dez pessoas assistiram a seu sepultamento, entre eles, Félix Pacheco, Olegário e José Mariano -sendo que este pagou as despesas. Nenhuma repercussão nos jornais.
Machado saiu da Academia que ele fundara com Lúcio Mendonça, teve discurso de Ruy Barbosa, que o substituiu na presidência da casa que teria o nome dele. Apesar disso, como dois artistas que eram, receberam ambos a única homenagem que conta, a única que realmente eleva e consola.
Na agonia de Machado, um jovem desconhecido de 15 anos entrou em seu quarto, ajoelhou-se e beijou-lhe a mão. Soube-se depois o nome desse jovem, que se tornou crítico literário e um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro: Astrojildo Pereira.
Com Lima Barreto a homenagem foi diferente. Chovia em Todos os Santos. O velório na sala era interrompido pelo barulho da chuva e, de quando em quando, pelos gritos do pai, que, no quarto ao lado, louco e moribundo, morreria horas depois. Em volta do caixão de terceira, os irmãos e a gente modesta do subúrbio, que Lima conhecia dos botequins e das ruas enlameadas e tristes.
De repente, um homem de seus 50 anos, cuja roupa e cujos modos revelavam que viera de longe, aproximou-se da mesa onde haviam colocado o caixão. Ninguém o conhecia, ninguém procurou saber quem era. Em silêncio, ele descobriu o rosto de Lima Barreto, contemplou-o, curvou-se e beijou-lhe a testa.
Saiu como entrara: em silêncio, sem cumprimentar ninguém.
Durante algum tempo, suspeitou-se que esse homem poderia ter sido Monteiro Lobato. Afinal, o autor de ""Urupês" fora responsável por um fato que parece único na história da literatura universal. Dirigindo a ""Revista Brasil'", berço da futura e poderosa Companhia Editora Nacional, Lobato se oferecera para editar um dos livros de Lima -o único que não seria de alguma forma custeado pelo próprio autor.
Somente um louco, como Lobato, mandaria um contrato de edição a um escritor também louco, que naquela ocasião estava internado no Hospício da Praia Vermelha. Para Lobato, como para Agripino Grieco e Jackson de Figueiredo, Lima era o maior romancista brasileiro -e pouco a pouco são muitos os que assim pensam, embora reconhecendo em Machado o maior escritor brasileiro de todos os tempos.
O triste fim de Lima Barreto ficou mais triste com o beijo de um desconhecido que nem a história nem a família ficaram sabendo quem era. Num registro de seu diário íntimo, Lima desabafara: ""Gosto da morte porque ela nos sagra". O afilhado de Nossa Senhora da Glória -ele sempre invocava essa condição- morreu sem glória. Pouco a pouco, contudo, em torno de seu nome e de sua obra, vão se aproximando aqueles que, em silêncio, se curvam diante de sua dilacerada herança.


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