São Paulo, Sexta-feira, 22 de Outubro de 1999
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ARTIGO
São Paulo deve dançar o lundu de José Bonifácio

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

A época é cafajestal porque dissociamos de modo esquizofrênico o bem-estar do povo da soberania nacional, resultando daí a ilusão cretina de que seremos social e culturalmente felizes sob o reinado da dominação exógena.
Basta aprender inglês e se inscrever como boy de luxo numa transnacional supercompetitiva. Os intelectuais e artistas brasileiros, a maioria vaselina e pusilânime, servirão comes e bebes na varanda da casa grande aos ocupantes. O poder desnacionalizado hoje badala a memória entreguista do pernambuco Joaquim Nabuco, na razão inversa do olvido a que é relegado o patriota paulista José Bonifácio de Andrada e Silva, patriarca desbundado de esquerda que almejava um país socialmente homogêneo.
Anos 80, Recife. Impensável àquela altura a venda do nosso subsolo pela sociologia. Em conversa que tive com Gilberto Freyre, de quem discordava por ter dado o nome de Joaquim Nabuco a seu instituto de pesquisas sociais, em vez do nome do pernambucano Oliveira Lima que colocou à disposição do xará de Apipucus sua biblioteca para escrever "Casa Grande e Senzala".
Não obtive a resposta de que gostaria. Doravante o Exu colonial se trasladaria de Lisboa para London e daí rumo a Washington. Alguns intelectuais brasileiros no passado, como Rui Barbosa e Monteiro Lobato, embarcaram nessa furada anglo-saxônica, cuja ideologia seduz o deslumbrado FHC: a de que seremos um dia amados pelos EUA, disputando a preferência deles com a vizinha Argentina.
Irônico e premonitório o samba de Noel Rosa: quem dá mais? Quem dá mais? Quem dá mais? São Paulo, se quiser deixar de ser marmelada, deveria cultuar seu filho pródigo esquecido, mostrando que é possível ser paulista e ao mesmo tempo brasileiro.
Tentando explicar o motivo da cultura paulista ter eclipsado a questão do nacionalismo à José Bonifácio, o antropólogo Darcy Ribeiro deu interpretação de cunho marxista a esse fenômeno ideológico: é que depois de 64, São Paulo, segundo Darcy, recebeu os capitais estrangeiros para recolonizar os "Brasis" ferrados.
É por causa disso que o intelectual paulista metido a fino relaciona-se menos com o resto do Brasil do que com o influxo Niuiorqui-Niuiorqui, fazendo coro à semântica da palavra provinciano: o bocó que adora as últimas novidades dos grandes centros.
O macho para dentro e a bela oferecida para fora são o verso e o reverso da travestização contemporânea do bandeirante sem água e sem garra. O estupendo ensaísta de Ribeirão Preto Gondin da Fonseca, filho de caiçara, escreveu que George Washington, o homem da independência dos EUA, era café pequeno se comparado culturalmente ao santista José Bonifácio, o qual se autodefiniu "caipira de São Paulo" e exímio dançarino de lundu.


Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros

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