|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GUILHERME WISNIK
O nomadismo sedentário
A idéia de mobilidade, hoje em dia, remete a uma condição transitória fixada em estado de permanência
|
NA ÚLTIMA década, uma das
palavras mais usadas nos debates e exposições ligados à
cidade tem sido "mobilidade". Em
geral, associada à aceleração das comunicações, ao aumento crescente
do turismo e à flexibilização dos Estados e economias advinda com a
globalização. O tema, no entanto, já
deixou de ser novidade nos anos 60,
quando o homem conquistava o espaço, as famílias de classe média lançavam-se com seus trailers numa vida "on the road", os Beatles imaginavam o cotidiano dentro de um submarino amarelo e o grupo inglês Archigram projetava cidades-robôs
que se deslocariam livremente sobre um território pós-atômico.
Mas o que liga ou separa os dois
momentos? Em meio ao clima utópico dos anos 60 (entre irônico, ingênuo e libertário), o impulso nômade envolvia uma clara decisão individual, como um desgarramento voluntário em direção a uma vida alternativa: despojada, pré-fabricada,
meio "science fiction". Hoje, esse
impulso parece generalizado e difuso, vindo a constituir o próprio "ser"
da cidade contemporânea. Contexto
no qual a idéia de mobilidade remete a uma condição transitória fixada
em estado de permanência. Por paradoxal que seja, engendramos um
nomadismo sedentário.
Se as tradicionais metáforas usadas para designar a cidade estiveram
sempre ligadas às noções de atração
e concentração (ímã, recipiente),
hoje aludem à dispersão (interface,
rede). Ocorre que, cada vez mais, o
elemento que agrega pessoas e, portanto, serviços e construções, é a circulação. Mobilidade é conexão. Por isso é que se diz que na metrópole
pós-industrial o espaço se tornou
um derivado do movimento.
Pensemos, por exemplo, nos
imensos "camelódromos" junto às
estações de transferência, como os
terminais intermodais de transporte. Ou, também, nas gigantescas "cidades" de serviços montadas em
torno dos aeroportos. Um caso
exemplar é Euralille: novo complexo metropolitano criado ao lado da
pequena cidade de Lille, na França.
Como diz o nome, Euralille não é a
cidade de um país, mas o pólo estratégico de um continente unificado,
situado a meio caminho entre Paris,
Londres e Amsterdã. Destaca-se por
sua localização, não pelas características intrínsecas do lugar. Nada mais
"natural", portanto, do que desenvolver ali um centro de transporte,
hospedagem, negócios e eventos.
É que o trabalho se faz cada vez
mais em deslocamento, acompanhando a própria flutuação do dinheiro. Flutuação que a construção,
no entanto, pereniza, expondo-se
como paradoxo.
Numa cidade como São Paulo, o
aumento incessante da frota de automóveis contradiz cada vez mais as
noções de agilidade e deslocamento.
Por outro lado, os usuários de transporte público passam a viver ainda
mais horas dentro de ônibus e vagões de trem, equipamentos que
tendem a adquirir valor de uso, tornando-se lugares de estar, e não
apenas instalações técnicas de locomoção. Definida como um eterno
viver em trânsito, a nossa mobilidade parece ter cristalizado o lado sedentário daquela "ficção" nômade
dos anos 60.
Texto Anterior: Crítica: Aos 63 anos, Joni Mitchell faz acerto de contas com a utopia de sua geração Próximo Texto: Robert Holl encerra ano do Mozarteum Índice
|