São Paulo, sexta-feira, 22 de outubro de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

Declaração de votos


O rapaz agitou a bandeira para ela e, achando pouco, resolveu catequizá-la aos gritos


DOMINGO PASSADO, ao cair da tarde, fui dar uma volta no Arpoador, rebocando a setter inglesa da minha filha. Eis que, sem aviso prévio, caímos de repente em meio a uma passeata, uma espécie de comício ambulante, cheio de som e fúria, motivando a plebe para as eleições do segundo turno.
A orla do Rio ficara lotada e dividida com os partidários dos dois candidatos: os eleitores de Serra parece que ficaram no Leme, o pessoal da Dilma ficou ali mesmo, formando a imensa e agitada procissão de bandeiras vermelhas que tremulavam à brisa do mar.
Bem que eu tentei chegar perto, mas a setter se recusou a ir adiante. Ela estranhou tanta gente e tanto entusiasmo. O remédio foi ficar a meio-termo, entre Ipanema e a ponta do Arpoador, onde um banco de pedra me ofereceu descanso e ponto privilegiado para melhor observar as coisas.
À minha frente, passavam os petistas, bandeiras ao vento, uma concentração como outra qualquer. Só reparei num detalhe: não vi passar diante de mim um único operário, um único cidadão que tivesse cara e função de trabalhador. A não ser um sujeito que vendia sorvetes -e que me disse ter votado em Marina.
Já pensava em ir embora quando presenciei o bate-boca: um rapaz, conduzindo um estandarte, parecia Aníbal ao entrar vitorioso em Cápua. Ele agitava o pavilhão do partido e fazia proselitismo exaltado. Atrás de mim, num daqueles edifícios suntuosos, uma empregada doméstica estava no janelão, olhando a vida passar. O rapaz agitou a bandeira para ela e, achando pouco, resolveu catequizá-la aos gritos:
- Olha aqui, filhinha, não vai atrás de seu patrão não, vota na Dilma, a Dilma é que defende você!
A mocinha -mal pude lhe ver o rosto- tinha seus 25 anos, muito digna em seu uniforme de arrumadeira. A voz vinha com o sotaque nordestino e caiu sobre a calçada:
- Não, moço, o meu patrão não vai votar, eu votei em Marina e agora vou de Serra...
O rapaz da bandeira ia replicar, reforçar a catequese, mas desanimou. Na cabeça dele, certamente tudo parecia absurdo naquela declaração de voto. Como? Então o patrão, dono de apartamento no Arpoador, gozando a vista mais cara do Rio, não ia votar? Recusava-se ao dever cívico, àquela manifestação básica da democracia? E como aquela nordestina recém-chegada ao Rio, brutalizada pela exploração capitalista do emprego doméstico, provavelmente sem carteira assinada, sem direito a férias, sem direito a nada, desdenhando os avanços sociais e econômicos do governo Lula, como ela poderia votar no Serra, galho desgarrado das privatizações, do neoliberalismo, do consenso de Washington?
Por isso e por aquilo, a campanha eleitoral, sobretudo no primeiro turno, colocou em questão o confronto entre o atual governo e o anterior. Serra seria a continuação mecanizada de FHC, que nada fizera pelos despossuídos, enriquecera os ricos e empobrecera os pobres. Dilma seria a continuação de Lula, montado em 81% de aprovação popular, que matara a fome de milhões de brasileiros e promovera outros milhões de deserdados para a classe média que pode comprar geladeira, TV e celular.
O rapaz -como já disse- desanimou de polemizar e seguiu avante, readquiria o seu ritmo e a sua certeza -cinco minutos depois, convencido pelo próprio entusiasmo e pela exaltação dos demais companheiros de passeata, nem pensava mais no caso, um caso certamente isolado, as pesquisas continuavam garantindo a vantagem de Dilma que, entre outras coisas importantes e pias, sabe fazer o sinal da cruz e visitou o santuário de Nossa Senhora Aparecida.
Ele não pensou mais na arrumadeira, considerou-a uma alienada, uma cúmplice do sistema que negava a sua classe e bandeava-se para o outro lado. Eu continuei pensando nela e na sua declaração de voto. Bem, isso foi na última semana, escrevo esta crônica antes da decisão do segundo turno.
Esperando o resultado final na sua verdade simples e implacável, continuarei pensando naquele rapaz embandeirado em seu pavilhão vermelho e em sua certeza eleitoral e ideológica. Já a setter inglesa não deu bola para as duas manifestações de voto. No fundo, ela sabe o que faz.

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Drauzio Varella



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