São Paulo, sexta-feira, 22 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA/ESTRÉIA

"DOMINGO SANGRENTO"

Obra traduz sons e cores da tragédia

DA REDAÇÃO

Não bastava ouvir os dois lados. Para reconstituir o Domingo Sangrento (Bloody Sunday) -um dos episódios mais dramáticos do conflito entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte- Paul Greengrass constatou que o que legitimaria sua versão seria mostrar como o fato de ambos terem atuado num ambiente de extrema tensão e de maneira muito rápida determinaria o fim trágico daquele dia.
Para conseguir esse efeito, imprimiu a seu "Domingo Sangrento", que estréia hoje, um ritmo nervoso, manteve a câmera trêmula todo o tempo e adotou uma linguagem no limite entre o documentário e a ficção.
O filme chega ao Brasil depois de levar o Urso de Ouro do último Festival de Berlim. Baseada no livro "Eyewitness Bloody Sunday", de Don Mullan, a co-produção Inglaterra-Irlanda intenta reconstruir os acontecimentos do dia 30 de janeiro de 1972, em Londonderry (Irlanda do Norte). Na ocasião, uma marcha pacífica na parte católica da cidade foi violentamente reprimida pelo Exército britânico. O saldo foi de 13 católicos irlandeses mortos e 14 feridos.
Ivan Cooper (James Nesbitt) é o deputado protestante que organiza o protesto por direitos civis. Ele passa a manhã pelas ruas onde a marcha deve passar, cumprimenta as senhoras católicas a caminho da missa e procura acalmar os jovens que passam o dia a provocar e a atirar pedras nos soldados britânicos que vigiam o movimento.
Tudo ainda está tranquilo em Derry, menos a câmera de Greengrass. Nervosa, capta passos apressados, a preparação de barricadas e os detalhes do rosto franzido do deputado, que parece antever que algo de muito ruim acontecerá nas próximas horas.
Do outro lado do muro que divide a cidade, tropas inglesas -não casualmente com os rostos pintados de negro- discutem a ação. A ordem é aproveitar a marcha para fazer, de uma só vez, 300 prisões de garotos "arruaceiros" e de supostos integrantes do IRA (Exército Republicano Irlandês), misturados à multidão.
A marcha começa. Subitamente, alguns garotos resolvem provocar o Exército inglês. Atiram pedras, provocam, sentam-se à frente dos soldados sem se incomodar com as balas de borracha atiradas para dispersá-los.
De repente, tiros atravessam o céu gris de Derry. Civis ensanguentados caem e fazem com que a multidão, apavorada, perceba que desta vez trata-se de balas de verdade. Um senhor de idade é alvejado com um lenço branco nas mãos, garotos são pegos pelas costas atrás de barricadas.
A narrativa, quase em tempo real, reforça não só o som das balas e dos corpos indo ao chão mas, principalmente, o silêncio que aos poucos avança e revela a irreversibilidade da tragédia.
Imediatamente segue-se a construção das versões. Quem atirou primeiro? Por quê? Já não há mais balas nem correria, mas nem por isso a câmera se acalma. Seguem os depoimentos, as versões desencontradas e as revelações dos nomes e das idades dos mortos.
Greengrass assume uma posição clara. Os civis estariam desarmados e não houve uma provocação inicial do IRA. O cineasta, entretanto, opta também por poupar os soldados britânicos. Nos depoimentos, eles comparecem hesitantes; em seus rostos, um misto de pesar e pavor.
"Domingo Sangrento" é uma denúncia contundente de uma injustiça histórica que os ingleses, tão ciosos de sua imagem de tolerância, ainda tentam remendar. O inquérito aberto na época inocentou todos os soldados envolvidos na operação. Alguns comandantes chegaram a ser condecorados pela rainha.
Apesar das reclamações dos parentes das vítimas, uma nova investigação só foi autorizada em 98, por iniciativa do primeiro-ministro Tony Blair.
O filme não faz uma mera acusação de cunho político. Seu olhar revela uma desolação generalizada em relação ao conflito. Mostra como, da tragédia, não se tiraram ainda as lições suficientes. Pelo contrário, criaram-se mártires e uma bandeira que serviram para justificar, até hoje, a violência na região. (SYLVIA COLOMBO)

Domingo Sangrento
Bloody Sunday


   
Direção: Paul Greengrass
Produção: Reino Unido/Irlanda, 2002
Com: James Nesbitt, Allain Gildea
Onde: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco 4 e Jardim Sul 2



Texto Anterior: Star Wars 2 - O Ataque dos Clones
Próximo Texto: "Full Frontal": Soderbergh reforça estilo instigante
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.