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São Paulo, sábado, 22 de novembro de 2003

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Correspondência entre o autor brasileiro e o tradutor Curt Meyer-Clason revela o desafio e a "aventura" de verter o livro mais famoso do escritor

O sertão alemão de ROSA

Leo Martins
Caricatura do escritor Guimarães Rosa, cuja correspondência com o seu tradutor para o alemão, Curt Meyer-Clason, é tema de livro


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Aos 93 anos de idade, o alemão Curt Meyer-Clason já encarou de tudo um pouco na vida. Mas nunca as coisas foram tão difíceis quanto no começo dos anos 60. Munido apenas de um dicionário e de lembranças dos anos que vivera no Brasil, ele se pôs a traduzir para o alemão expressões como "A crêvo!", "Crondeúbas", "antes esses desrodeamos" ou a "prosáica" "dei rapadura ao jumento".
O ex-funcionário de uma indústria de algodão recriava na língua de Kant "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, a provavelmente mais intraduzível obra da história da literatura brasileira.
Meyer-Clason não apenas atravessou ileso o Liso do Sussuarão como saiu dessa jornada com um bom punhado de elogios superlativos. "É o melhor de todos os meus tradutores, provavelmente um dos melhores que há no mundo", cravou Guimarães Rosa.
Não vem de um "elogiador" qualquer a afirmação. Além de falar com perfeição ao menos seis línguas, entre elas o alemão, e de conhecer bastante bem outras diversas, o escritor de Cordisburgo (MG) efetivamente foi traduzido para duas dúzias de idiomas.
Meyer-Clason, o "über" tradutor, finalmente abre o jogo agora dos bastidores dessa sua "aventura literária" -o termo é dele mesmo.
A editora Nova Fronteira está colocando no mercado nos próximos dias o volume "João Guimarães Rosa: Correspondência com Seu Tradutor Alemão Curt Meyer-Clason".
Organizado pela professora Maria Apparecida Bussolotti, que tratou desse assunto em sua dissertação de mestrado na USP, em 1997, o trabalho reproduz toda a troca de cartas entre escritor e tradutor, material inédito.
Foram 55 envelopes, os trocados entre o Rio de Janeiro e a cidade de Munique, onde Clason ainda vive e -repetindo: ele tem 93 anos- traduz.
As mensagens começaram com um formal "Exmo. Sr. Ministro João Guimarães Rosa", por parte do alemão, em janeiro de 1958. Ele ouvira algo sobre um bom novo autor chamado Rosa e pedia ao escritor o direito de traduzi-lo.
A resposta demorou um ano e um mês. Rosa mandou três livros e a notícia de que ninguém estava traduzindo o "Grande Sertão: Veredas" ao alemão. "Achei um livro muito difícil, mas encarei o desafio", relembra Clason, em entrevista por telefone à Folha.
Com um português irrepreensível, que colheu nos 17 anos que viveu no país, a contar de 1936, ele rememora o choque do novo. "Era uma língua mágica, com aquilo que um dos grandes conhecedores de América Latina, um cientista do século 18, chamava de "cor do estranho"."
O antigo industrial não se intimidou e seguiu adiante. E os "ilustríssimo senhor ministro" logo viraram "caro amigo".
"Sem a ajuda de Guimarães Rosa, não teria conseguido", diz e rediz, com insistência.
Rosa de fato "se abria", como mostram as cartas. E aí qualquer estudioso ou admirador de sua obra pode desfrutar da leitura. "Não viram, principalmente, que o livro é tanto um romance quanto um poema grande, também. É poesia (ou pretende ser, pelo menos)", anota o escritor sobre seus tradutores americanos e afirma que como "muito bem viu o maior crítico literário brasileiro, Antonio Candido, obedece, em sua estrutura, a um rigor de desenvolvimento musical".
Essas lições Meyer-Clason "traduziu" de modo bastante feliz. Diz ele ao telefone: "Guimarães Rosa escapou do "penso, logo existo". Para mim a língua dele é "canto, logo existo'".
Especialista em poesia, que já traduziu Drummond, Cabral e Gullar, "sempre por paixão pessoal", o velho amigo de Rosa não é modesto com o resultado de suas transcriações líricas (Rosa também não, e justifica-se em carta citando Schopenhauer: "Só os coitados são modestos").
Clason diz: "Consegui uma versão idiomaticamente equivalente, expressão usada por mim e Rosa". Ele afirma que não conseguiu recriar cada uma das cerca de 8.000 invenções de palavras (neologismos) que o escritor usa no romance épico-lírico de Riobaldo e Diadorim, mas que preservou "sentido, ritmo, música, equivalência íntima".
A "equivalência" entre Rosa e Clason também seguiu adiante, com o segundo traduzindo todos os principais livros do primeiro.
Apesar de terem se encontrado só duas vezes, se falaram com grande frequência por correio, até a morte do escritor (pouco depois de dizer na posse na Academia Brasileira de Letras que "as pessoas não morrem, ficam encantadas"), em 1967. "Ele sempre foi encantado", diz Clason.

JOÃO GUIMARÃES ROSA: CORRESPONDÊNCIA COM SEU TRADUTOR ALEMÃO CURT MEYER-CLASON. Edição e organização: Maria Aparecida Faria Marcondes Bussolotti. Editora: Nova Fronteira (co-edição com Academia Brasileira de Letras e Editora UFMG). Quanto: R$ 49 (448 págs.).


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