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WALTER SALLES
Os navios ancorados no espaço
"É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço." A frase é da poeta Ana Cristina César. É lembrada em um belo
texto de seu irmão Luis Felipe e
consta de uma publicação em
memória de Ana Cristina, talvez
a mais brilhante autora de sua
geração. Faz parte de uma retrospectiva com fotos, manuscritos e
poemas atualmente em exposição
no Rio de Janeiro.
Em São Paulo, está em cartaz
uma peça da autora inglesa Sarah Kane, "4.48 Psicose". Nos Estados Unidos, acaba de estrear
"Sylvia", baseado na vida de outra poeta seminal, Sylvia Plath.
Ana Cristina César, Sarah Kane e
Sylvia Plath têm algo em comum.
São como meteoros que passaram
rápido demais por aqui. Não cabiam na mediocracia reinante.
Optaram por dar um ponto final
em suas vidas. Pode-se falar em
suicídio -a única questão filosófica realmente importante, nas
palavras de Camus. Pode-se também olhar para um possível contracampo: o rastro de luz que elas
deixaram para trás.
Sarah Kane, 28 anos. Sylvia
Plath, 29. Ana Cristina, 31 anos.
Pode-se também lembrar de Kurt
Cobain, 27 anos. Ou, por caminhos diferentes, Janis Joplin, 27
anos. Jim Morrison, 27. Jimi Hendrix, 27. Todos deixaram obras
realizadas na vertigem do tempo
em que viveram. Radicalmente
modernas. "Que não lamentem
os mortos: eles sabem o que fazem", recorda o pai de Ana Cristina, Waldo César, citando Cecília
Meireles.
De todas essas pessoas, a que
talvez seja de mais difícil decodificação é Sarah Kane. Violência
verbal, crueza das situações, rasgos de lucidez e incoerência: fui
assistir a "4.48 Psicose", dirigida
por Nelson de Sá, e saí balançado.
O espaço inquietante, uterino, em
que a peça está ambientada, no
Sesc Belenzinho, ajuda a deslocar
o espectador para esse outro
mundo. Projeções de frases e imagens nas paredes aumentam a
sensação de estranhamento. O
texto, ao início, soa como um
SOS, um grito catártico que ecoa
no ar.
Quem viu a encenação francesa
da mesma peça, com Isabelle
Huppert, diz que ela era mais
próxima de um poema, uma reza,
do que de um vômito. A encenação brasileira é convulsiva. Não
romantiza o ato final. Se já não
entendo muito de cinema, imagine só de teatro. Não conhecia nada de Sarah Kane, não compreendi tudo o que ela me dizia e quis
saber mais. Acabei aprendendo
que Kane tem algo em comum
com um outro poeta e teatrólogo
maldito, o francês Antonin Artaud. Artaud é o inventor do "teatro da crueldade". Uma forma de
representação pensada não para
reconfortar o espectador, mas para sacudi-lo.
O tratamento de choque desestabiliza certezas, mostra que o
buraco é mais embaixo. Se o texto
de Kane nos projeta em um universo em transe, ele também ajuda a entender melhor o que está à
nossa volta. Nem tudo é sombra.
Um texto de uma crítica francesa
propõe uma interpretação que
me parece fazer sentido: "Se é fácil enumerar os atos de crueldade
que existem em "4.48 Psicose", é
mais difícil admitir o quanto eles
se relacionam com o nosso cotidiano. E, no entanto, esses atos
são uma manifestação da busca
de um mundo em que essa crueldade, justamente, desapareceria". Se assim for, essa pulsão destrutiva também existiria para curar. Como uma tempestade em
mar aberto, que nos ajuda a melhor gozar dos momentos de calmaria. Corta.
No jornal da cidade em que me
encontro, tão longe do Brasil, há
uma página que anuncia todos os
dias os nascimentos e as mortes
das pessoas. Não há distinção entre esses estados. Estão misturados, como se fossem uma coisa só.
"A vida é nascimento, copulação,
morte", dizia alguém. Não me
lembro quem. Mas me lembro de
quem disse que é difícil ancorar
navios no espaço.
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