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São Paulo, sábado, 22 de novembro de 2003

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WALTER SALLES

Os navios ancorados no espaço

"É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço." A frase é da poeta Ana Cristina César. É lembrada em um belo texto de seu irmão Luis Felipe e consta de uma publicação em memória de Ana Cristina, talvez a mais brilhante autora de sua geração. Faz parte de uma retrospectiva com fotos, manuscritos e poemas atualmente em exposição no Rio de Janeiro.
Em São Paulo, está em cartaz uma peça da autora inglesa Sarah Kane, "4.48 Psicose". Nos Estados Unidos, acaba de estrear "Sylvia", baseado na vida de outra poeta seminal, Sylvia Plath. Ana Cristina César, Sarah Kane e Sylvia Plath têm algo em comum. São como meteoros que passaram rápido demais por aqui. Não cabiam na mediocracia reinante. Optaram por dar um ponto final em suas vidas. Pode-se falar em suicídio -a única questão filosófica realmente importante, nas palavras de Camus. Pode-se também olhar para um possível contracampo: o rastro de luz que elas deixaram para trás.
Sarah Kane, 28 anos. Sylvia Plath, 29. Ana Cristina, 31 anos. Pode-se também lembrar de Kurt Cobain, 27 anos. Ou, por caminhos diferentes, Janis Joplin, 27 anos. Jim Morrison, 27. Jimi Hendrix, 27. Todos deixaram obras realizadas na vertigem do tempo em que viveram. Radicalmente modernas. "Que não lamentem os mortos: eles sabem o que fazem", recorda o pai de Ana Cristina, Waldo César, citando Cecília Meireles.
De todas essas pessoas, a que talvez seja de mais difícil decodificação é Sarah Kane. Violência verbal, crueza das situações, rasgos de lucidez e incoerência: fui assistir a "4.48 Psicose", dirigida por Nelson de Sá, e saí balançado. O espaço inquietante, uterino, em que a peça está ambientada, no Sesc Belenzinho, ajuda a deslocar o espectador para esse outro mundo. Projeções de frases e imagens nas paredes aumentam a sensação de estranhamento. O texto, ao início, soa como um SOS, um grito catártico que ecoa no ar.
Quem viu a encenação francesa da mesma peça, com Isabelle Huppert, diz que ela era mais próxima de um poema, uma reza, do que de um vômito. A encenação brasileira é convulsiva. Não romantiza o ato final. Se já não entendo muito de cinema, imagine só de teatro. Não conhecia nada de Sarah Kane, não compreendi tudo o que ela me dizia e quis saber mais. Acabei aprendendo que Kane tem algo em comum com um outro poeta e teatrólogo maldito, o francês Antonin Artaud. Artaud é o inventor do "teatro da crueldade". Uma forma de representação pensada não para reconfortar o espectador, mas para sacudi-lo.
O tratamento de choque desestabiliza certezas, mostra que o buraco é mais embaixo. Se o texto de Kane nos projeta em um universo em transe, ele também ajuda a entender melhor o que está à nossa volta. Nem tudo é sombra. Um texto de uma crítica francesa propõe uma interpretação que me parece fazer sentido: "Se é fácil enumerar os atos de crueldade que existem em "4.48 Psicose", é mais difícil admitir o quanto eles se relacionam com o nosso cotidiano. E, no entanto, esses atos são uma manifestação da busca de um mundo em que essa crueldade, justamente, desapareceria". Se assim for, essa pulsão destrutiva também existiria para curar. Como uma tempestade em mar aberto, que nos ajuda a melhor gozar dos momentos de calmaria. Corta.
No jornal da cidade em que me encontro, tão longe do Brasil, há uma página que anuncia todos os dias os nascimentos e as mortes das pessoas. Não há distinção entre esses estados. Estão misturados, como se fossem uma coisa só. "A vida é nascimento, copulação, morte", dizia alguém. Não me lembro quem. Mas me lembro de quem disse que é difícil ancorar navios no espaço.


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