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CRÍTICA
As mutações do melodrama
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Apesar de reunir textos produzidos nos últimos 15 anos
para veículos diversos do país e
do exterior, "O Olhar e a Cena" é
um livro coeso e orgânico como
poucos.
Os ensaios recolhidos no volume acompanham uma reflexão
"in progress" de Ismail Xavier a
respeito do melodrama e de alguns de seus principais desdobramentos e/ou reverberações no cinema de Hollywood, na ficção televisiva e, virado pelo avesso, nas
várias apropriações da literatura
de Nelson Rodrigues pelo cinema
brasileiro.
Nesse percurso, Xavier identifica uma matriz melodramática
que tem raízes no teatro medieval
e passa pelo drama burguês sério
postulado por Diderot antes de
desembocar, no fim do século 18,
no melodrama propriamente dito, que legou ao cinema clássico
seu arcabouço moral e seus dispositivos de representação.
Num ensaio brilhante, o crítico
disseca o embate com essa tradição empreendido pelo cinema industrial em dois momentos-chave: o de sua formação (Griffith) e
o de sua plenitude e, digamos, superação irônica (Hitchcock).
Preparado o terreno, Xavier discorre com perspicácia sobre as estratégias de atualização da matriz
melodramática em superproduções como "Titanic" ou "Forrest
Gump", ou mesmo nas telesséries
nacionais "Anos Dourados" e
"Anos Rebeldes".
Se as minisséries de Gilberto
Braga, sobretudo a primeira citada, são lidas como uma espécie de
"modernização conservadora" do
melodrama clássico -uma resposta otimista e conciliatória à
crise do modelo patriarcal e à
emergência entre nós da sociedade de consumo-, o teatro e o folhetim de Nelson Rodrigues apresentam-se como momento de
derrisão e/ou perplexidade diante
do mesmo processo.
A literatura de Nelson, mostra-nos Xavier, é um mundo de crises
(auto) destrutivas e insolúveis,
povoado por pais e maridos impotentes, sem que os novos costumes apareçam como perspectivas
positivas de renovação. Desde o
início dos anos 50 esse mundo
apocalíptico e desintegrado foi
apropriado de diversas maneiras
pelo cinema brasileiro. Um terço
de "O Olhar e a Cena" dedica-se
ao mapeamento e à discussão das
sucessivas ondas de adaptações.
Do plano geral, Xavier passa a
uma leitura mais detida das complexas relações entre o cinema
novo e Nelson Rodrigues e se
aprofunda numa análise cerrada
da leitura da obra do dramaturgo,
em chave tragicômica, por Arnaldo Jabor. É um momento alto do
ensaísmo crítico no Brasil, que
confirma Ismail Xavier como digno herdeiro de Antonio Candido
e Paulo Emilio na arte de trafegar
entre a visão de conjunto e a atenção ao particular, entre a arte e a
sociedade que a produz.
O Olhar e a Cena
Autor: Ismail Xavier
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 55 (381 págs.)
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