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São Paulo, sábado, 22 de novembro de 2003

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CRÍTICA

As mutações do melodrama

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Apesar de reunir textos produzidos nos últimos 15 anos para veículos diversos do país e do exterior, "O Olhar e a Cena" é um livro coeso e orgânico como poucos.
Os ensaios recolhidos no volume acompanham uma reflexão "in progress" de Ismail Xavier a respeito do melodrama e de alguns de seus principais desdobramentos e/ou reverberações no cinema de Hollywood, na ficção televisiva e, virado pelo avesso, nas várias apropriações da literatura de Nelson Rodrigues pelo cinema brasileiro.
Nesse percurso, Xavier identifica uma matriz melodramática que tem raízes no teatro medieval e passa pelo drama burguês sério postulado por Diderot antes de desembocar, no fim do século 18, no melodrama propriamente dito, que legou ao cinema clássico seu arcabouço moral e seus dispositivos de representação.
Num ensaio brilhante, o crítico disseca o embate com essa tradição empreendido pelo cinema industrial em dois momentos-chave: o de sua formação (Griffith) e o de sua plenitude e, digamos, superação irônica (Hitchcock).
Preparado o terreno, Xavier discorre com perspicácia sobre as estratégias de atualização da matriz melodramática em superproduções como "Titanic" ou "Forrest Gump", ou mesmo nas telesséries nacionais "Anos Dourados" e "Anos Rebeldes".
Se as minisséries de Gilberto Braga, sobretudo a primeira citada, são lidas como uma espécie de "modernização conservadora" do melodrama clássico -uma resposta otimista e conciliatória à crise do modelo patriarcal e à emergência entre nós da sociedade de consumo-, o teatro e o folhetim de Nelson Rodrigues apresentam-se como momento de derrisão e/ou perplexidade diante do mesmo processo.
A literatura de Nelson, mostra-nos Xavier, é um mundo de crises (auto) destrutivas e insolúveis, povoado por pais e maridos impotentes, sem que os novos costumes apareçam como perspectivas positivas de renovação. Desde o início dos anos 50 esse mundo apocalíptico e desintegrado foi apropriado de diversas maneiras pelo cinema brasileiro. Um terço de "O Olhar e a Cena" dedica-se ao mapeamento e à discussão das sucessivas ondas de adaptações.
Do plano geral, Xavier passa a uma leitura mais detida das complexas relações entre o cinema novo e Nelson Rodrigues e se aprofunda numa análise cerrada da leitura da obra do dramaturgo, em chave tragicômica, por Arnaldo Jabor. É um momento alto do ensaísmo crítico no Brasil, que confirma Ismail Xavier como digno herdeiro de Antonio Candido e Paulo Emilio na arte de trafegar entre a visão de conjunto e a atenção ao particular, entre a arte e a sociedade que a produz.


O Olhar e a Cena
    
Autor: Ismail Xavier Editora: Cosac & Naify Quanto: R$ 55 (381 págs.)



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