|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"A Construção do Gosto"
Musicólogo realiza estudo profundo do período joanino
Maurício Monteiro analisa cultura pré-existente no Brasil e valores da nobreza lusa
IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Falar de música não é só
analisar partituras ou
contar "causos" sobre
os "gênios" da composição. A
música pode e deve ser analisada como um fato social, um código cultural elaborado e decodificado em uma determinada
época e local.
Nesse aspecto, "A Construção do Gosto - Música e Sociedade na Corte do Rio de Janeiro - 1808-1821", de Maurício
Monteiro, representa um salto
gigantesco com relação ao que
se faz nessa área hoje, no Brasil.
Não que faltassem bons livros sobre o impacto cultural
da Versalhes tropical que a dinastia de Bragança criou no Rio
de Janeiro, ao fugir das tropas
napoleônicas, em 1808.
Mas a musicologia estava a
dever um estudo profundo como este, que, em vez de apenas
contar historinhas sobre José
Maurício Nunes Garcia, Marcos Portugal e Sigismund Neukomm (os três maiores músicos em atividade naquele período), investigasse, do ponto
de vista da música, as relações
entre a cultura pré-existente
no Brasil, os valores chegados
com a nobreza lusa e o resultante desse encontro -especialmente significativo se levarmos em conta a importância
que o fazer musical tinha para a
monarquia lusitana.
Afinal, os Bragança eram
uma casa especialmente ligada
a esse tipo de manifestação artística -D. João 4º havia sido
compositor, D. João 5º investira pesadamente em música, e a
Real Capela, que D. João 6º
trouxe ao Rio, era considerada
uma das melhores orquestras
européias daquele tempo.
"Quando a corte desembarcou no Brasil, foi necessário fazer com que todos percebessem sua chegada e depois se habituassem à sua permanência e
observassem suas práticas", escreve o autor.
Em uma sociedade em que a
ópera era a expressão estética
da pompa e poder do monarca,
o gosto constituía prerrogativa
da corte. "Estar, ou mostrar-se,
de acordo com o gosto do monarca significou estar mais perto dele e de suas práticas e, de
certa forma, sentir-se civilizado ou na busca do ideal europeu de civilização."
Apresentador de programas
da Cultura FM, com um rico
currículo como musicólogo, e
dono de uma prosa em que o rigor metodológico não compromete a fluência ou o prazer da
leitura, Monteiro reflete com
erudição e maestria sobre os diversos cruzamentos estéticos e
sociais engendrados pela situação sui generis de uma cidade
do Novo Mundo ser a capital de
um reino europeu.
Aborda não apenas a música
"erudita", da corte, mas também as práticas "plebéias", dos
lundus e modinhas, em uma sociedade marcada pela profunda
clivagem da escravidão.
Pinturas de Debret retratando cerimônias públicas, ou os
anúncios da Gazeta do Rio de
Janeiro sobre pianos à venda,
são analisados como documentos históricos tão importantes
quanto as partituras.
Os aspectos puramente musicais são analisados, sim, e
com seriedade, mas sem aquele
pedantismo rançoso que costuma tornar os textos acadêmicos
áridos, impenetráveis e hostis
aos "leigos".
Muita gente já louvou a rica
prática musical carioca do período joanino. Com o livro de
Monteiro, talvez estejamos, finalmente, dando o primeiro
passo para compreendê-la.
A CONSTRUÇÃO DO GOSTO -
MÚSICA E SOCIEDADE NA CORTE DO RIO DE JANEIRO - 1808-182
Autor: Maurício Monteiro
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 50 (360 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Crítica/ "O Paraíso das Damas": Émile Zola encena o mundo do consumo e do supérfluo Índice
|