São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

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BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Do ponto de vista moral, "Uma Missa para a Cidade de Arras", romance do polonês Andrzej Szczypiorski (1924-2000), é impecável. Escrito em reação à campanha anti-semita que o governo comunista polonês dirigiu contra os intelectuais judeus em 1968, o livro é um ataque ao totalitarismo, ao populismo e à demagogia.
É um livro que se dirige tanto ao bom senso como ao consenso, uma vez que ninguém em sã consciência se declara de viva voz a favor do totalitarismo, do populismo ou da demagogia, nem mesmo os ditadores, os populistas ou os demagogos.
Para denunciar o absurdo e as injustiças do presente, Szczypiorski recorre ao passado. A caça às bruxas e aos judeus na cidade de Arras (norte da França) em 1461 serve de alegoria da Polônia em 1968. A distância do passado torna a crítica da injustiça irrefutável e consensual. O autor usa o acontecimento histórico como parábola. É um recurso, aliás, bastante conhecido dos escritores sob as ditaduras.
Szczypiorski foi um dos colunistas políticos mais combativos da imprensa polonesa do pós-guerra. Lutou na juventude contra a ocupação nazista ao lado dos comunistas e foi mandado para um campo de concentração. Aliado à oposição democrática no final dos anos 70, foi internado sob a lei marcial que vigorou entre 81 e 82. Em 89, foi eleito senador pelo Solidariedade, mas renunciou em 91, por discordar do rumo populista tomado pelo movimento.
"Uma Missa para a Cidade de Arras" narra a sanha com que os cidadãos manifestam seus preconceitos e perseguem judeus e hereges, guiados pela autoridade religiosa que age sob aparência representativa de um conselho municipal. É quase um tratado de psicologia social, cujos alvos são os totalitarismos em geral e a Polônia em particular.
O romance faz do passado um palanque de idéias e princípios sobre a justiça com os quais, em princípio, todo ser humano de bom senso está de acordo. E é aí que começam os problemas, não do ponto de vista político ou moral, mas literário.
No número 11 da revista de poesia "Inimigo Rumor", que acaba de sair pela editora 7 Letras em parceria com as portuguesas Cotovia e Angelus Novos, há uma entrevista em muitos pontos idiossincrática, e por isso mesmo esclarecedora, com aquele que é considerado o maior poeta português vivo, Herberto Helder, em geral tão avesso às entrevistas.
"Não há nada a ensinar embora haja tudo a aprender. Aquilo que se aprende vem do nosso próprio ensino (...), vão se aprendendo sempre as maneiras da pergunta. Uma pergunta em perguntas, um poema em poemas (...). Aprende-se que a pergunta se desloca com a luz inerente, ilumina-se a si mesma, (...) ensina a si mesma, ao longo de si mesma (...). Leio romances desde que perceba que não estão a responder. Alguns são extraordinárias máquinas interrogativas (...). Existem romances imperdoáveis, quase todos os romances contemporâneos são imperdoáveis", diz Helder.
No romance de Szczypiorski, por exemplo, a partir do momento em que o leitor entende que o texto é um pretexto, não há mais nenhuma surpresa. Tudo obedece a um objetivo moral que foi previamente calculado para que se reconhecesse ali o óbvio inquestionável: os absurdos da injustiça.
Ao fazer do romance um instrumento e uma ilustração contra o terror totalitário, não cabe ao autor se arriscar, às cegas, por caminhos desconhecidos. Ao contrário, para provocar a indignação do leitor, precisa levá-lo a reconhecer, pela luz incontestável da alegoria histórica, um caminho que ele já conhece.
Szczypiorski escreve como um editorialista político. Trabalha com evidências. É porta-voz da razão. A intenção pode ser a melhor do mundo, mas em literatura, por mais justo e inteligente que seja o argumento, a submissão da potência da dúvida (a que se refere Herberto Helder) a veículo de uma mensagem correta é quase sempre de um esquematismo constrangedor.
Se não fosse, bastaria aos escritores uma boa dose de bom senso para que produzissem verdadeiras obras-primas, e a história tem provado que as coisas não são bem assim. Não há verdade na literatura que forja perguntas para as respostas que já tem.
Uma Missa para a Cidade de Arras
Msza za miasto Arras
   
Autor: Andrzej Szczypiorski
Tradutor: Henryk Siewierski
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 24 (156 págs.)

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