São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2001

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"O APANHADOR DE SONHOS"

ETs de King oferecem boa diversão

RODOLFO LUCENA
EDITOR DE INFORMÁTICA

Ainda bem que livro não exala cheiro, porque o fedor de "O Apanhador de Sonhos" seria insuportável. Vômitos, arrotos, excrementos e outros dejetos humanos encharcam a primeira parte da nova obra de Stephen King, o primeiro romanção do mestre do suspense desde o acidente que quase o matou, em 99.
Manuscrito a caneta enquanto King convalescia e não ficava confortável com o computador portátil, "O Apanhador de Sonhos", editado no Brasil pela Objetiva, é a prova de que a temporada no hospital não enferrujou o mago do best-seller, mas também não nos livrou de certas manias de King.
Depois de uma resvalada no que poderia ser chamado de terror psicológico, em "Saco de Ossos", o autor volta para seu chão mais tradicional, povoado por monstrinhos assassinos, gosmentos, feiosos e fedidos, que são enfrentados por gente como a gente.
Para variar, nos bons livros de King, a história não é o que mais importa. Em todo o caso, trata-se do início da invasão do planeta por extraterrestres, parasitas que, na Terra, só conseguem viver dentro dos seres humanos, alimentando-se dos órgãos e tecidos como câncer com dentes. Em contrapartida, dão aos seus hospedeiros capacidades telepáticas.
Para enfrentar os tais vermes esfaimados, King montou um time formado por quatro amigos entrando na faixa dos 40. Eles se conhecem desde os tempos de infância, na Derry, palco de outras assombrações de King (como o palhaço assassino de crianças de "A Coisa"). E têm, também desde a infância, profunda ligação com um garoto portador da síndrome de Down, cuja presença é sentida ao longo de toda a trama e terá participação decisiva no final.
Além deles, o Exército atua no combate ao inimigo interplanetário, dando margem à criação dos costumeiros estereótipos: o comandante doidão, o sub que quer se vingar do chefe maluco, mulheres oficiais sedentas de sangue e por aí vai.
Contando assim, fica difícil entender por que o título é "O Apanhador de Sonhos". Trata-se de uma espécie de tapeçaria indígena que enfeita a cabana de um dos heróis, base para a turma quando os quatro participam de caçadas nos bosques do Maine -o terreno onde se deu a chegada dos ETs.
Já que muito da história envolve a questão da transmissão de pensamentos, o aparato e sua função corporificada acabam também entrando na dança. O livro, mesmo cheio de ação, está longe de ser vertiginoso. Ao contrário, as primeiras cento e tantas páginas são bem chatinhas. É nelas que King exerce sua proverbial mania de repetir idéias, repisar frases, acentuar detalhes e dar-lhes aparência de uma importância que a história depois não confirma.
Por causa desse estilão, já virou lugar-comum decretar que os textos de King ganhariam muito com cortes de 20% a 40% -cada crítico sugere sua medida. Pode até ser verdade -afinal, é chique prezar a elegância, a concisão e a precisão do palavreado. Mas também é verdade que, com esse estilo, King pega o leitor pela mão e o vai levando pela trama, faz a tensão crescer mesmo que aparentemente não esteja acontecendo grande coisa: a insistência deixa o leitor certo de que algo importante vai acontecer.
Quando ocorre, pode até ser que dê a sensação de que a montanha pariu um rato, mas a partir daí a trama se desenrola, estica, tensiona e conquista o leitor que aguentou até aquele momento.
Faz parte também dessa estratégia de King a organização simples da história (ainda que cheia de idas e vindas entre passado e presente) e o linguajar simplório. Afinal, os adultos que atuam na trama estão referenciados em seu período de início de adolescência.
E King não está fazendo "grande literatura" (expressão que, para alguns críticos, parece merecer ser escrita em letras maiúsculas e douradas, acompanhada por coro de anjos). Está nos oferecendo diversão. E boa.


O Apanhador de Sonhos
Dreamcatcher - A Novel
   
Autor: Stephen King
Editora: Objetiva
Tradutor: José Arantes
Quanto: R$ 51,90 (656 págs.)




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