São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS/LANÇAMENTOS

HISTÓRIA

Pesquisador francês lança olhar sobre México e lê traços de Debret

Obra escava mestiçagens no Novo Mundo

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

Uma névoa espessa embaça a visão dos historiadores, impedindo-os de compreender estes tempos de globalização. O diagnóstico é do francês Serge Gruzinski, que aponta a razão: para ele, a história tem dado pouca importância ao tema das mestiçagens.
"O Pensamento Mestiço", que o historiador e paleógrafo -especialista em México- da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) lança no Brasil, é uma tentativa de contextualizar as mesclas culturais entre Europa e Novo Mundo desde os descobrimentos e traçar sua influência na história da América Latina.
O livro analisa diversas formas tomadas pelas mestiçagens na cultura, assim como os olhares dispensados a ela. Sob sua lente passam desde as iconografias indígena e barroca a obras do cinema contemporâneo.
Gruzinski analisa "O Livro de Cabeceira" ("The Pillow Book", 1996), de Peter Greenaway, para abordar a troca de olhares entre Oriente e Ocidente e como se transformam, ao longo do tempo, as noções de exotismo, centro e periferia dentro dessa relação.
O excelente filme de Wong Kar-wai, "Felizes Juntos" ("Happy Together", 1997), drama amoroso sobre dois chineses gays que lutam para sobreviver em Buenos Aires, é esquadrinhado para revelar o olhar asiático em relação à América Latina.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Serge Gruzinski, que também participa de uma coletânea de ensaios sobre Debret (leia texto abaixo), concedeu à Folha.

Folha - O que é mestiçagem?
Serge Gruzinski -
Creio que o conceito de mestiçagem é uma noção tipicamente latino-americana, conectada com os estudos mexicanos e peruanos. Nós, europeus, utilizamos os conceitos de "hibridação" ou de "sincretismo". Nem o inglês nem o alemão têm uma palavra para traduzir a idéia de mestiçagem. A globalização não é um fenômeno recente, pois se manifestou desde o século 16 com o processo político chamado de "monarquia católica", isto é, a união do Império português com o castelhano. Nessa primeira dominação mundial, proliferaram na Europa, África, Ásia e América mundos misturados e sociedades mestiças.

Folha - O México é o país mais propício para o estudo das mestiçagens na América Latina?
Gruzinski -
O caso mexicano é o que melhor conheço. Está muito bem documentado, pois não apenas temos documentos espanhóis, mas também fontes que provêm das sociedades indígenas, como pinturas ou esculturas.
No Brasil, os estudos dos povos indígenas e as análises da iconografia colonial estão ainda em fase pouco desenvolvida. Os que estão sendo feitos sobre os índios da Amazônia e sobre a sociedade colonial do Maranhão, por exemplo, demonstram que existe um material excepcional que pode ser comparado com o de muitas zonas do México e do Peru. Assim, creio que será possível descobrir fenômenos de mestiçagem tão complexos e sofisticados como os que estudei no México.

Folha - Acha que o conceito de exótico tende a desaparecer com a globalização, ou este se fortalece na exploração que a indústria cultural faz do termo?
Gruzinski -
Penso que a categoria do "exótico" não está desaparecendo justamente porque as indústrias culturais não deixam de aproveitar essa dimensão para vender produtos não-europeus. É verdade que a uniformização planetária dos modos de viver pode criar a impressão de reduzir cada vez mais o espaço das coisas exóticas. No entanto, os imaginários coletivos mudam de modo mais lento que as práticas locais.

Folha - Por que "Happy Together", de Wong Kar-wai, lhe parece tão emblemático?
Gruzinski -
O interesse que vejo no filme de Wong Kar-wai está na maneira subversiva como ele interpreta a realidade argentina a partir de um olhar chinês. Em vez de reproduzir os exotismos do imaginário ocidental, ele projeta uma visão asiática sobre Buenos Aires, obrigando-nos a mudar o nosso olhar tradicional e estereotipado sobre a América Latina.

Folha - Acha que a influência latina nos EUA será determinante para a cultura ocidental neste século?
Gruzinski -
Não pode passar desapercebido o crescimento da população de origem latino-americana nos EUA. Não podemos ignorar a vitalidade das culturas mestiças que se desenvolvem na fronteira que separa e une o México e os EUA. Basta citar o último filme de David Lynch, "Mulholland Drive", que toma emprestado elementos da cultura mexicana em sua trama. Não posso profetizar o futuro, mas asseguro que uma das frentes mais ativas de criação cultural no mundo ocidental está nesta parte do mundo.


O PENSAMENTO MESTIÇO - de: Serge Gruzinski. Editora: Companhia das Letras. Tradutora: Rosa Freire d'Aguiar. Quanto: R$ 38 (398 págs.).


Texto Anterior: Publicação: CD-ROM fecha coleção da revista "Cult"
Próximo Texto: Pinturas de Debret têm releitura
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.