São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2001

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WALTER SALLES

Lou Reed e o ano em que a realidade ultrapassou a ficção

Aquilo que à primeira vista parece irreal sofre, muitas vezes, de excesso de realidade, lembrou há alguns dias o escritor Don DeLillo ao jornal "Libération". Eyes wide shut: as imagens dos aviões ceifando as torres do WTC ficarão retidas para sempre nas nossas memórias também por causa disso, por implodirem a fronteira entre realidade e ficção.
Essas imagens foram repetidas à exaustão. As retrospectivas televisivas de final de ano prometem prolongar esse fascínio mórbido. Escrevendo para o "Le Monde", Baudrillard sugere que o extraordinário poder de atração dessas imagens reside no fato de que essa colisão foi, de certa forma, desejada. Faz parte de um inconsciente coletivo que se relaciona de maneira ambivalente com os Estados Unidos. A tese é polêmica: a potência das imagens do 11 de setembro derivaria, segundo Baudrillard, do fato de que muitos de nós desejamos, de formas e em graus diversos, essa colisão.
Já Adorno devolveria a bola para os norte-americanos: desejam-se os desastres que se imaginam, dizia ele. Nesse sentido, os filmes-catástrofe hollywoodianos seriam como um anúncio da destruição que viria a acontecer.
Pode-se concordar ou não com esses raciocínios. Há outros à mão. Um dos aspectos mais interessantes do pós 11/9 é justamente a polifonia dos pontos de vista que nos foram oferecidos. Assim, 2001 também ficará marcado como o ano em que intelectuais tão diversos quanto José Saramago, Susan Sontag, Paul Virilio, Paul Auster ou Salman Rushdie pensaram sobre o mesmo assunto -e nos repensaram.
Uma coisa é certa: nada mais será como antes. O ano de 2001 trouxe o fim da invulnerabilidade norte-americana, o questionamento da verticalidade, a recusa de um mundo regido pela tecnologia e pelos simples critérios da eficiência. Trouxe o fim de antigas certezas e o surgimento de novos truísmos. O fim do fim da história. A exacerbação patriótica, os arroubos nacionalistas e a celebração do militarismo. A vitória da tese do olho por olho. E aquelas bandeirinhas tremulando ao vento, coladas em milhares de automóveis norte-americanos -que queimam petróleo saudita.
Foi o ano de todos os paradoxos. O maior deles talvez resida no fato de que Bin Laden, protegido pelo regime que dinamitou a imagem do Buda em Bamiyan e proibiu a pintura, a fotografia e o cinema, tenha justamente sido o vencedor inicial da guerra midiática. E nos deixado o mais enigmático documento sobre a origem do conflito -o vídeo doméstico em que fala abertamente do atentado.
Ground zero, Cabul, cemitérios a céu aberto. No meio desse apocalipse, eu me pergunto se ainda é possível olhar para aquilo que aconteceu de forma não analítica ou distanciada. Humanizar a tragédia, para melhor transcendê-la. Encontro esse olhar nas fotos estupendas de Samira Makhmalbaf no Afeganistão, publicadas pelas edições da Mostra. E nos versos catárticos de Lou Reed em "Laurie Escuta Tristemente", que ele acaba de compor. Eis:
Laurie, se você estiver me ouvindo,
Os pássaros estão em fogo
O céu reluz
Enquanto do alto do prédio olho
A carcaça incinerada da aranha
Enquanto do alto do prédio penso em você,
Louco de desejo.
P.S. Como não seria de estranhar em um ano tão barulhento quanto este, o mais discreto dos Beatles morreu silenciosamente. All things must pass. Todas as coisas passarão. Nós, você, eu. Bom 2002 para todos.


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