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WALTER SALLES
Lou Reed e o ano em que a realidade ultrapassou a ficção
Aquilo que à primeira vista parece irreal sofre, muitas
vezes, de excesso de realidade,
lembrou há alguns dias o escritor
Don DeLillo ao jornal "Libération". Eyes wide shut: as imagens
dos aviões ceifando as torres do
WTC ficarão retidas para sempre
nas nossas memórias também por
causa disso, por implodirem a
fronteira entre realidade e ficção.
Essas imagens foram repetidas
à exaustão. As retrospectivas televisivas de final de ano prometem
prolongar esse fascínio mórbido.
Escrevendo para o "Le Monde",
Baudrillard sugere que o extraordinário poder de atração dessas
imagens reside no fato de que essa
colisão foi, de certa forma, desejada. Faz parte de um inconsciente
coletivo que se relaciona de maneira ambivalente com os Estados Unidos. A tese é polêmica: a
potência das imagens do 11 de setembro derivaria, segundo Baudrillard, do fato de que muitos de
nós desejamos, de formas e em
graus diversos, essa colisão.
Já Adorno devolveria a bola para os norte-americanos: desejam-se os desastres que se imaginam,
dizia ele. Nesse sentido, os filmes-catástrofe hollywoodianos seriam
como um anúncio da destruição
que viria a acontecer.
Pode-se concordar ou não com
esses raciocínios. Há outros à
mão. Um dos aspectos mais interessantes do pós 11/9 é justamente
a polifonia dos pontos de vista
que nos foram oferecidos. Assim,
2001 também ficará marcado como o ano em que intelectuais tão
diversos quanto José Saramago,
Susan Sontag, Paul Virilio, Paul
Auster ou Salman Rushdie pensaram sobre o mesmo assunto -e
nos repensaram.
Uma coisa é certa: nada mais
será como antes. O ano de 2001
trouxe o fim da invulnerabilidade
norte-americana, o questionamento da verticalidade, a recusa
de um mundo regido pela tecnologia e pelos simples critérios da
eficiência. Trouxe o fim de antigas certezas e o surgimento de novos truísmos. O fim do fim da história. A exacerbação patriótica,
os arroubos nacionalistas e a celebração do militarismo. A vitória
da tese do olho por olho. E aquelas bandeirinhas tremulando ao
vento, coladas em milhares de automóveis norte-americanos
-que queimam petróleo saudita.
Foi o ano de todos os paradoxos. O maior deles talvez resida
no fato de que Bin Laden, protegido pelo regime que dinamitou a
imagem do Buda em Bamiyan e
proibiu a pintura, a fotografia e o
cinema, tenha justamente sido o
vencedor inicial da guerra midiática. E nos deixado o mais enigmático documento sobre a origem do conflito -o vídeo doméstico em que fala abertamente do
atentado.
Ground zero, Cabul, cemitérios
a céu aberto. No meio desse apocalipse, eu me pergunto se ainda é
possível olhar para aquilo que
aconteceu de forma não analítica
ou distanciada. Humanizar a
tragédia, para melhor transcendê-la. Encontro esse olhar nas fotos estupendas de Samira Makhmalbaf no Afeganistão, publicadas pelas edições da Mostra. E nos
versos catárticos de Lou Reed em
"Laurie Escuta Tristemente", que
ele acaba de compor. Eis:
Laurie, se você estiver me ouvindo,
Os pássaros estão em fogo
O céu reluz
Enquanto do alto do prédio
olho
A carcaça incinerada da aranha
Enquanto do alto do prédio
penso em você,
Louco de desejo.
P.S. Como não seria de estranhar em um ano tão barulhento
quanto este, o mais discreto dos
Beatles morreu silenciosamente.
All things must pass. Todas as coisas passarão. Nós, você, eu. Bom
2002 para todos.
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